Mais uma vez, o cinema europeu nos brinca com um ótimo filme. Sim, sem delongas. Os Filhos dos Outros é intimista demais, direto demais e real demais para meias palavras ou grandes rodeios apenas para concluir que é uma excelente obra. E carrega no fundo um gosto amargo, que só o pragmatismo é capaz de proporcionar.
Os Filhos dos Outros traz abordagem intimista para uma narrativa pessoal
No enredo, Rachel é uma professora de 40 anos, que se envolve com Ali, um homem recém divorciado e pai de uma menina de quatro anos. O que Rachel não esperava é que ela fosse se apegar tanto à pequena Leila. Isso acaba resgatando um já esquecido anseio pela maternidade, porém, talvez seja tarde demais para ela.
Sendo baseado em experiências pessoais da diretora, a talentosa Rebecca Zlotowski, confesso que em diversos momentos do filme, me senti espionando, olhando pela fechadura, como se aquela história fosse íntima demais. As transições em vinheta, como se estivesse adequando o olhar ao observar por uma fresta ou buraco na parede traduz bem essa sensação. Mas, não a ponto de ser constrangedor, ou me forçando ao mero papel de espectadora. Bem, apenas uma espectadora, sim. Porém, com substância o suficiente para me relacionar com cada cena e situação.
O Reflexo de Muitas Mulheres em Rachel
Não é nenhuma novidade o quanto nós, mulheres, somos pressionadas a respeito da maternidade. Ao ponto de ainda ser um grande tabu, em muitas famílias, a rejeição à maternidade. Seja pelo motivo que for, mulheres são consciente e inconscientemente levadas a crer que só serão completas quando se tornarem mães. E no nosso caso, existe uma cruel contagem regressiva. Ter ou não ter? Eis a questão.
Como professora, Rachel acaba se preocupando e ajudando seus alunos, intercedendo, aconselhando, alimentando e até mesmo vestindo os mais carentes de atenção. Como madrasta, ela ama e cuida da pequena Leila. Como irmã, ela ama e cuida de seu sobrinho, fruto de uma gestação não planejada.
Por isso, muitas mulheres irão se ver na Rachel. Uma mulher madura e pragmática, que se vê em um relacionamento, que não é. Com uma filha, que não é. Com uma família, que não é. E que sentirá na pele o quanto “o que não é” dói. É namorada, mas não é família. É importante, mas não é prioridade. Que cuida, mas não é cuidada. Que ama, mas não é mãe.
Em Os Filhos dos Outros, a figura da madrasta é tirada do segundo plano
Os Filhos dos Outros consegue uma ótima convergência entre direção, roteiro, atuação e fotografia. Virginie Efira entrega uma atuação leve e sua Rachel é engraçada, comovente e sensual. Mas, acima de tudo, é real. Já Roschdy Zem cumpre bem o papel de pai de meia-idade, com um “quê” de conquistador, um pouco displicente e egoísta. A direção não reinventa a roda, mas é honesta e não comete muitos erros.
Já o roteiro traz para os holofotes a imagem da madrasta, uma personagem comumente relegada ao plano secundário e tão demonizada em contos infantis. Sim, o imagético da madrasta ainda precisa ser melhorado para irromper esse estigma ruim. E é interessante perceber, quando se olha de fora, o nível de resiliência necessário para manter inabalável um romance assim. É um roteiro sensível ao mostrar os medos e incertezas de uma mulher, quando sua responsabilidade é para com os filhos dos outros. O ponto negativo fica para a trilha sonora, que realmente não impacta ou cria cenas memoráveis.
Uma Reflexão Sobre a Vida e as Expectativas Femininas
Os Filhos dos Outros é um retrato sensível e honesto de uma mulher que se vê navegando em águas incertas, buscando seu lugar em uma família que não é a sua. Com isso, Destaca a realidade comum, mas demonizada, das mulheres que, por qualquer que seja o motivo, não se torna mãe. Ainda desafia os estereótipos da madrasta, mostrando a resiliência necessária para manter um relacionamento complexo. Por fim, nos faz lembrar de que a vida nem sempre segue o roteiro que esperamos.
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