Existe um certo padrão em filmes de possessão que esperamos encontrar toda vez que assistimos uma dessas obras. Uma casa assombrada, uma seita macabra, um cemitério indígena, um personagem suscetível ou, ainda, alguém que acha uma boa ideia brincar com um tabuleiro ouija. Algumas variações ou combinações, mas a estrutura primária de um terror de possessão será sempre essa. Você já sabe o que será entregue e onde está se metendo. Sem surpresas.
O Mal Que Nos Habita surpreende justamente por ser uma obra que pega todos os tópicos que citei acima e os utiliza como uma lista do que evitar. Em adição à escolha de fugir do tradicional, a utilização bem acertada de efeitos práticos consegue deixar tudo ainda mais impactante. Mostrando, mais uma vez, que um bom terror não precisa abusar do CGI.
Fragmentos de um Universo Distópico em O Mal Que Nos Habita
Em O Mal Que Nos Habita, dois irmãos encontram com um corpo mutilado nas proximidades de sua propriedade e se unem aos habitantes locais para investigar o incidente. É quando descobrem que os acontecimentos peculiares na região estão sendo desencadeados por um demônio que possuiu um homem nas redondezas.
Uma ideia simples que rende desdobramentos e se relaciona, ainda que de maneira distante, com acontecimentos recentes da nossa história. Aqui a possessão é apresentada como um vírus, do qual todos sabem existir, mas ainda assim, acreditam ser improvável de acontecer em um local tão remoto. Com isso, coisas como a negligência de governantes e equívocos de uma população que acredita que apenas cuidados extraoficiais podem resolver, transformando tudo em um completo caos.
Quando a trama de O Mal Que Nos Habita começa a revelar, em doses homeopáticas, informações sobre aquele universo, logo percebemos que estamos assistindo a um filme distópico. Os recortes de informações jogadas pelas personagens dão a entender que a humanidade foi assolada por eventos de possessão, mas que essa era uma “doença” das grandes cidades. Sendo assim, moradores de áreas remotas achavam ser impossível que esses eventos pudessem acontecer ali.
A Mitologia Intrigante de O Mal Que Nos Habita
Apesar da ideia para o filme originalmente partir dos problemas que a Argentina vem enfrentando com agrotóxicos, também é possível ter outras interpretações. Como, por exemplo, a recente pandemia e como alguns governantes reagiram a ela. Ou, se pensarmos que os possuídos são chamados de podres, ainda podemos entender como uma metáfora para o capitalismo e pessoas corrompidas pelo poder.
A mitologia criada por Demián Rugna para O Mal Que Nos Habita é instigante e faz você querer saber mais sobre ela. Normalmente, em longas onde as informações são vagas ou incompletas, a tendência do espectador é a perda do interesse pela falta de clareza. No entanto, aqui ocorre o oposto. Os fragmentos revelados sobre o background daquele universo são tão acertados, que acaba fazendo o público procurar qualquer vestígio de informação que possa saciar sua curiosidade sobre o que está acontecendo.
A falta de diálogos expositivos cede espaço para interpretações e reflexões, sem pecar na estrutura narrativa, que se mantêm coesa e com poucos furos de roteiro. Até quando o longa insere aquele momento de estupidez que todo filme de terror obrigatoriamente tem, o faz de forma coerente com o que vem sendo contado. Várias ideias vistas aqui nunca foram cogitadas, ou postas em prática, e resultaram em um longa que marca por sua originalidade e ousadia.
É tão comum nos depararmos com personagens rasos em filmes de terror, que é surpreendente quando somos apresentados à algo além da superficialidade. No centro da história temos Pedro, interpretado pelo excelente Ezequiel Rodríguez, que possui um passado obscuro. E é justamente isso que minará suas tentativas de resolver o problema. Já o Jimi de Demián Salomón é mais contido, mas é possível reconhecer traços de uma personalidade pouco ortodoxa nele. Com relação ao restante do elenco, servem bem ao seu propósito, sem exageros.
Influências e Originalidade para Compor um Ambiente Assustador
O Mal Que Nos Habita, apesar de ser absurdamente original em sua proposta, traz em sua composição influências claras em Evil Dead, REC, A Bruxa e até The Last of Us. Os dois primeiros já apresentaram a ideia de infecção demoníaca de alguma forma, enquanto os outros serviram de inspiração estética. Porém, Demián Rugna utiliza essas referências com tanta destreza, que em nenhum momento há o sentimento de cópia ou de “já vi isso antes”.
Outro ponto forte, como já mencionei no início do texto, é o uso de efeitos práticos com a utilização de CGI em momentos pontuais. Isso deixa as cenas assustadoramente mais críveis, gerando maior empatia do espectador. Outro toque ousado de Demián é conduzir a história sem se preocupar em poupar qualquer um que seja, criando um sentimento de que tudo pode dar errado a qualquer momento e nos fazendo temer pelos personagens.
E nesse ponto é que realmente o filme brilha. Com uma ambientação impecável, a construção de uma mitologia com regras próprias nos instiga a ficar atentos aos mínimos detalhes. Então, ao percebermos que tem algo errado, a tensão toma conta de nós antes mesmo dos personagens em tela. Ou seja, o filme acaba não precisando se apoiar em artifícios, como jumpscares, para criar uma atmosfera assustadora.
O Mal Que Nos Habita Proporciona uma Revolução no Gênero de Possessão
Em suma, O Mal Que Nos Habita se destaca ao desafiar as convenções previsíveis dos filmes de possessão, subvertendo a típica estrutura do gênero e transformando o enredo em algo além do comum. É, de fato, uma revolução no cenário do terror, com uma mitologia instigante, que causa repulsa ao passo que desperta curiosidade. Bem verdade, eu adoraria ver uma sequência ou uma série antagônica. Oferece originalidade, ousadia e uma narrativa envolvente que transcende as expectativas do gênero. Grandes chances de ser o filme de terror do ano.
O Mal Que Habita em Nós finalmente chega, oficialmente, aos cinemas brasileiros dia 1 de fevereiro.
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