Desvendando Clássicos 01 | Acorda Amor (Chico Buarque)

Há muito tempo venho querendo falar mais profundamente sobre algumas canções, hoje começo uma nova série de posts, Desvendando os Clássicos trará tanto músicas nacionais quanto internacionais, começamos com uma pequena pérola de Chico Buarque.

 

Acorda_Amor_post1

 

Acorda Amor tem uma história bem legal que acrescenta bastante à já gigante qualidade da canção em si. Em 1973 Chico havia lançado o álbum Calabar, trilha sonora de sua peça de teatro de mesmo nome. O disco ficou apenas alguns dias nas lojas até ser recolhido a mando do governo militar. Foi relançado posteriormente com o nome Chico Canta, maneira como é comercializado até hoje. A peça teatral Calabar é uma obra extremamente política e crítica à ditadura militar vigente no país na época e as canções sofreram diversas intervenções da Censura, o que levou à proibição de Chico assinar qualquer canção como compositor. Em 1974 ele lançou o álbum Sinal Fechado que trazia apenas canções de compositores amigos dele, como Festa Imodesta de Caetano Veloso, Copo Vazio de Gilberto Gil, Lígia de Tom Jobim e a canção título do álbum, obra-prima de Paulinho da Viola (que logo trarei aqui). Ao meio de um repertório de diversos compositores famosíssimos se destacava uma canção um desconhecido Julinho da Adelaide, Acorda Amor.

Julinho da Adelaide nada mais era do que um pseudônimo de Chico, para que ele conseguisse colocar uma canção própria no trabalho, e que canção! Após ser proibido de compor por ser politizado demais Chico aparece com uma pedrada dessas, que coragem:

 

 

Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão

Acorda, amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer

Acorda, amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre, o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção!

Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa, não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)

 

A música começa com um som de viaturas no fundo, as primeiras frases são:

 

“Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição”

 

O tema da canção é a perseguição política que qualquer pessoa contrária ao regime ditatório sofria (e que o próprio Chico sofreu), o eu-lírico diz que teve um pesadelo e sonhou que havia gente chamando no portão, aí ele diz de maneira velada quem é, o que explica o medo dele: “Era a dura, numa muito escura viatura“. A dura, obviamente é a ditadura, que veio numa viatura escura, uma alusão ao DOI-CODI, a polícia política do regime. Aí ele completa a estrofe com uma das sacadas poéticas mais geniais que já vi, já que gente estranha está invadindo sua casa para pegá-lo, o normal seria chamar a polícia, certo? Mas no caso quem quer pegá-lo é a própria polícia, já que ele é “subversivo”, então ele diz: “chame o ladrão, chame o ladrão“.

“Acorda, amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens”

Na sequência ele percebe que não é sonho não, que realmente a polícia está lá pra prendê-lo (notem aqui a expressão Os Homens, bem típica pra se referir pejorativamente à polícia).

No trecho seguinte da canção o ritmo muda e temos uma parte mais melódica com uma letra muito significativa:

“Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer”

Aqui Chico ilustra uma situação muito comum na época, as famílias dos presos políticos que não sabiam se eles um dia voltariam e, se eles não voltassem, não sabiam o que havia acontecido a eles. Até hoje muitas famílias esperam pra saber onde foram enterrados seus entes queridos.

Ele conclui a canção com um aviso:

“Não demora
Dia desses chega a sua hora”

Quando fechamos o olho pro que acontece ao próximo, um dia pode acontecer a mesma coisa a nós mesmos, aí todos fecharão também os olhos. E ele ainda dá a receita pra não ter problemas com o regime: “Não discuta à toa, não reclame“, ou seja, não pense por si próprio, cale a boca e obedeça. Chico, como sempre, um gênio.

PS: Não me perguntem como essa canção foi aprovada pela censura… eles não eram realmente um primor de inteligência…

 

Bônus

 

 

Não achei essa versão no Youtube, então tive que colocar a do Spotify, mas vale a pena demais ouvir, é do Songbook do Chico e Jards Macalé manda bem demais, a música combinou muito com a voz dele.

 

Nerd: Arthur Malaspina

Arthur Malaspina é professor de português, nerd irrecuperável e humorista ocasional. Também não consegue se manter longe de discussões, seja na vida real, seja na internet. Tem opinião formada sobre praticamente tudo no mundo... mas não se preocupem, fica mais legal com o tempo. Co-proprietário do blog Han Atirou Primeiro (hanatirouprimeiro.blogspot.com.br). Twitter: @arthurskywalker

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