Em letras de música, videoclipes, livros, filmes, seriados… E, infelizmente – principalmente – na vida real. Os school shootings são uma realidade triste e desumana, e bem menos romantizada, heroica e gloriosa do que a mídia e a cultura retratam.
Tal fascínio e idealização têm grande culpa por esse fenômeno continuar a fazer vítimas – a cultura pop nos cerca de assassinos adolescentes charmosos, inteligentes, incompreendidos e, muitas vezes, nos faz sentir empatia pelos motivos que os levaram a planejar a morte de pessoas inocentes, como vingadores da juventude rejeitada contra os atletas e bullies – o que é um dos fatores que mais inspiram outros jovens a tomarem as mesmas medidas drásticas para lidarem com os próprios problemas nas escolas, recriando tragédias como o Massacre de Columbine, no Colorado, em 1999, um dos mais famosos casos nos Estados Unidos.
Você já deve ter escutado a história: depois do baile de formatura do Columbine High School, dois alunos – Eric Harris e Dylan Klebold – colocaram em prática o ataque terrível ao colégio, matando 12 alunos e um professor, e deixando mais 21 feridos antes de se matarem. Se não conhece o que aconteceu em Columbine, conhece algum dos tiroteios que vieram depois, gerando uma cultura de school shootings que, infelizmente, está sendo exportada pelos Estados Unidos para o resto do mundo.
Um mito com consequências reais
Apesar de o que aconteceu em Columbine inspirar diversos tiroteios em escola que vieram depois, por jovens que buscavam reproduzir os padrões de Eric e Dylan para recriar a “justiça” feita por eles, toda essa ficção “robin hoodiana” não passa de uma história criada pela mídia para justificar os atos cruéis de um psicopata e de um garoto severamente deprimido e com tendências suicidas.
Em uma quinta-feira, dia 18-09, o autor de “Columbine”, livro que busca desmistificar as falsas motivações dos dois adolescentes, veio até o Brasil para o lançamento do livro pela Dark Side. Além da sessão de autógrafos, tivemos a oportunidade incrível de bater um papo com Dave Cullen, que nos contou um pouco sobre o livro, sobre sua experiência como jornalista na época da tragédia e sobre os mais de dez anos que passou estudando sobre o caso e sobre o perfil psicológico de Eric e Dylan e as reais razões por trás do ataque.
A obra pretende desfazer o mal causado por todo o sensacionalismo que se seguiu ao massacre, que acabou servindo como “uma história poderosa para os rejeitados”, segundo Cullen, dando força para que busquem, nestes ataques, a resposta para o que sofrem no ambiente escolar, causando uma epidemia de tiroteios por escolas em todo os EUA até os dias de hoje.
O “bando” de jornalistas e a “névoa da guerra”
Um dos fatores cruciais para tais mitos terem perpetuado, mencionado pelo autor, é o que ele chama de “pack of journalists“, o bando de jornalistas: quando alguma coisa muito grande acontece, todos querem ter uma matéria para publicar, e na corrida para ver quem sai na frente, acabam publicando as primeiras coisas as quais tem acesso – muitas vezes sem ser verdade, e muitas vezes só repetindo o que outros jornalistas já falaram, seguido um ao outro, formando a matilha de opiniões todas iguais, que ecoaram os mitos de vingança e bullying. O próprio Dave, que era um dos jornalistas cobrindo o caso na época, assume que fez parte desse bando, e que chegou até mesmo a mudar sua primeira matéria sobre o caso para ficar mais parecida com as de seus colegas jornalistas, por medo que seu texto ficasse “para trás”.
Outro fenômeno que acontece em situações como essa é a “fog of war”, névoa da guerra: termo muito utilizado pelos americanos para falar do período caótico em que eventos terríveis, como a guerra, acontecem, quando todos estão correndo por suas vidas, sem entender direito o que está acontecendo, com medo, sem enxergar a situação toda. Muito parecido com o que aconteceu em Columbine.
Cullen diz que outro grande erro dos jornalistas foi tratar todos os estudantes que saía do colégio como testemunhas, o que era impossível. Nem todos os mais de 2.000 estudantes tinham estado presente nos tiroteios, ou sequer conheciam os atiradores – mas todos tinham algo para falar, o que distorceu bastante a história. Segundo Dave, “leva dias para a poeira baixar e as pessoas entenderem o que realmente aconteceu”. O resultado desses primeiros momentos depois do caos são, na maior parte das vezes, especulações. Por isso nunca devemos acreditar nas primeiras notícias que seguem uma tragédia, pois são resultado de um jornalismo apressado e, muitas vezes, irresponsável.
“Nós aprendemos a verdade gradualmente”
Para apoiar ainda mais a ideia da névoa da guerra, Cullen traz outro argumento interessante: a família, os amigos próximos dos envolvidos, sempre se escondem nos primeiros dias. Portanto, é improvável que qualquer coisa que se fale sobre o caso por outras pessoas seja a verdade. O autor disse que a verdade é aprendida gradualmente, com o tempo. No caso de Columbine, para entender a real motivação dos atiradores, foram muitos anos de estudo. Somente 7 anos depois os diários de Eric e Dylan chegaram ao conhecimento do público, além das inúmeras horas de gravações em fitas que eles deixaram – e que somente a polícia tem acesso. Dave estudou exaustivamente esse material para traçar o perfil psicológico dos adolescentes e todo o caso, o que resultou em mais matérias e, posteriormente, no livro.
Mas é claro que um trabalho tão intenso num caso tão perturbador deixa marcas: o autor também nos contou alguns dos momentos mais difíceis durante os anos em que cobriu e estudou o caso, e chegou a se emocionar muito em seus relatos sobre seu estresse pós-traumático, e como ele lida com os efeitos da tragédia até os dias de hoje.
Como lidar com o problema? Estudando o problema e falando sobre ele.
A parte mais marcante da conversa com Dave Cullen foi, com certeza, quando ele falou sobre como, infelizmente, os EUA estão exportando essa cultura, e como devemos lidar “da próxima vez que isso acontecer por aqui, no Brasil – pois uma vez que isso começa, vai acontecer mais vezes”. Por mais que as lembranças do que aconteceu em Suzano em março ainda sejam dolorosas, não podemos fechar os olhos para a gravidade da situação, e de como a influência de Columbine foi muito forte para Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro, os ex-alunos que reproduziram o ataque de Eric e Dylan na Escola Estadual Professor Raul Brasil, matando cinco estudantes e duas funcionárias – e também não podemos esquecer de como o ataque também foi justificado no começo como bullying, até a situação começar a ser investigada e esclarecida. Em poucos minutos de pesquisa, encontramos mais casos parecidos que aconteceram este ano. É alarmante, e, segundo Cullen, nossos governantes e autoridades estão nos decepcionando por não educarem nossos jovens a prevenir casos do tipo.
Nos Estados Unidos, uma das medidas que mais tem ajudado a prevenir ataques é o relato de pessoas a quem os agressores contaram a alguém próximo que estavam planejando fazer um ataque do tipo. Dave disse que em cerca de 80% dos casos os jovens contam para amigos o que pretendem fazer, e que os adolescentes americanos já são instruídos a sempre denunciar quando escutam algo do tipo, mesmo que acreditem ser apenas uma brincadeira.
O livro de Dave Cullen é até mesmo usado como material didático sobre o tema, para ajudar na conscientização e desmistificação de tiroteios em escolas. Para o autor, o melhor jeito de lidar com a questão é estudá-la, entendê-la, e informar as pessoas sobre como casos do tipo podem ser evitados se identificados com antecedência.
Como identificar possíveis agressores?
Respondendo a uma pergunta da plateia, sobre se era possível identificar pessoas capazes de tais atos, Cullen nos informou de que há três principais perfis de possíveis autores de ataques do tipo:
1 – Jovens com grave depressão, como Dylan, com tendências suicidas e facilmente influenciáveis;
2 – Pessoas com graves doenças mentais (minorias em casos assim);
3 – Psicopatas, como Eric, que encontram nos depressivos suicidas os aliados perfeitos.
Para finalizar a conversa, Cullen nos contou que o tiroteio, inicialmente, era para ter sido como um ataque terrorista, com foco nas diversas bombas construídas pela dupla – mas, por sorte, as bombas todas falharam, e as armas (que seriam utilizadas no plano deles apenas para “se divertirem” atirando nos alunos que fugiriam das explosões) foram um último recurso.
É claro que, no livro, há muito mais detalhes sobre a tragédia, sobre as vítimas, sobre os sobreviventes e sobre os agressores. Comecei a lê-lo, e o pouco que li já me mostrou ser uma leitura envolvente e esclarecedora. É claro que, me sentindo culpada pelo fascínio pelo assunto, na hora dos autógrafos, perguntei para Cullen o porquê de termos tanta curiosidade sobre tragédias e agressores do tipo, e ele me disse que é porque ficamos fascinados com a maldade, com como essas mentes funcionam. Mas que esse fascínio também é algo ruim, pois funciona de combustível para que a história continue se repetindo: ele me disse que mais de um caso como esse acontecem por dia, mesmo com todos os que conseguem evitar com as medidas de precaução. Porém, ele acredita que algo muito positivo está começando a acontecer, e que pode começar a mudar essa epidemia: as pessoas estão começando a ficar “cansadas” de casos como esse, estão começando a perder o interesse, a não dar mais tanta atenção e “glória” para os agressores. Ninguém mais sabe de cabeça o nome dos autores dos últimos ataques, ninguém mais fica obcecado por eles como antigamente, e ele espera que isso desencoraje e diminua os ataques.
Nós também, Cullen. Esperamos que seu livro também seja um rico material didático para nós, que sirva para nos educar contra essa cultura de vingança fictícia, de medo e insegurança. Esperamos, do fundo do coração, que você esteja errado sobre os casos se intensificarem em nosso país, e que, mesmo em meio a todo ódio que vivemos nos dias de hoje, consigamos recuperar nossos jovens antes que seja tarde demais, apresentando outros caminhos e soluções para os problemas que enfrentam, seja na escola, em casa ou onde quer que se sintam ameaçadas, incompreendidas e provocadas.
Columbine foi lançado no Brasil pela editora Dark Side, e já está disponível em diversas livrarias, físicas e online.