Quando acordei no dia 30/04 (de 2017) tive a triste surpresa de descobrir que o grande Belchior havia morrido, infelizmente a galera mais nova o conhece mais por ele haver desaparecido e virado – por isso – reportagem no Fantástico, do que por sua extensa e brilhante carreira musical. Belchior apareceu compondo grandes sucessos pra Elis Regina e depois se firmou como cantor ele próprio, sempre compondo suas próprias músicas num estilo único que mistura MPB, música nordestina, rock e folk, com letras filosóficas e quase sempre depressivas e cínicas. Belchior é e sempre será um dos grandes compositores da música brasileira, aquele que lutou pelo novo, que trouxe sombras à alegria natural de nosso cancioneiro.
Pra mim a morte de Belchior é ainda mais pessoal, pois minha mãe (que faleceu ano passado depois de alguns anos lutando contra um câncer de pâncreas violentíssimo) era muito fã dele e me apresentou suas músicas desde a infância. Eu conheci Como Nossos Pais na versão dele e não na muito mais famosa versão de Elis Regina, o que deve ser algo bem raro (mesmo porque a gravação de Elis é a original). Sabendo da partida deste grande artista eu quis fazer essa lista pra apresentá-lo aos que não o conhecem direito, ao mesmo tempo em que o homenageio e, ainda, relembro minha querida mãe. Escolher somente cinco canções em seu maravilhoso repertório é algo cruel, mas acho que concordarão comigo ao final.
Fotografia 3×4
Álbum: Alucinação
Ano de lançamento: 1976
Alucinação é um dos melhores discos de todos os tempos, como disse um amigo meu hoje, o disco é tão bom que um incauto que o escute pode pensar tratar-se de uma coletânea de maiores sucessos. Quatro das cinco canções desta lista são deste álbum que alavancou a carreira solo de Belchior. Fotografia 3×4 é um belo resumo de tudo que Belchior fazia de melhor, um som misturando rock e folk, uma letra tremendamente filosófica e aquele pessimismo tão habitual do artista. A letra mostra o preconceito do migrante nordestino que veio fazer vida em São Paulo e o aprendizado do artista com os insucessos e porradas que a vida lhe deu. E ainda puxa o ouvinte pro seu lado quando diz: “Eu sou como você”.
“Em cada esquina que eu passava um guarda me parava
Pedia os meus documentos e depois sorria
Examinando o 3×4 da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha”
Apenas um rapaz latino-americano
Álbum: Alucinação
Ano de lançamento: 1976
Esta talvez seja a canção que mais define Belchior, aqui ele diz quem é, apresenta seu já habitual pessimismo, a vontade de mesmo assim seguir em frente e – mais uma vez – ainda coloca o ouvinte junto a ele, afinal quem não é “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”? Caramba, eu sou. Aposto que você também é.
Percebam como ele constrói aos poucas a ironia da letra, ele primeiro diz quem é, depois dá um ar otimista no trecho:
“Mas trago de cabeça
Uma canção do rádio
Em que um antigo
Compositor baiano
Me dizia
Tudo é divino
Tudo é maravilhoso”
Pra enfim derrubar tudo de maneira cortante:
“Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior“
No meio da canção ele ainda apresenta uma bela proposição poética, a de que não há arte sem ferida, a de que o grande artista não pode escrever material estéril, afinal, o material estéril não tem valor algum. Arte alguma tem valor se não ferir fundo:
“Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém”
A Palo Seco
Álbum: Alucinação
Ano de lançamento: 1976
A palo seco é uma declaração e uma declaração bem poderosa:
“Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi:
Amigo, eu me desesperava”
Não há esperança, há desespero. Lembrem-se, 1976, a ditadura estava ainda muito forte e Belchior deixa claro que esta não é uma época de sonhos, é uma época de desespero (“Sei que assim falando pensas que esse desespero é moda em 76”). É interessante notar como a América do Sul (e não necessariamente apenas o Brasil) é presente nas letras de Belchior, o compositor sabia que estávamos todos no mesmo barco furado:
“Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues”
Ele conclui a canção novamente lembrando o valor da arte como despertar, como abridora de feridas:
“E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês”
Como Nossos Pais
Álbum: Alucinação
Ano de lançamento: 1976
Esta canção maior de nosso cancioneiro foi originalmente gravada por Elis Regina no seu disco Falso Brilhante, de 1976, mas ela já a havia interpretado na peça musical de mesmo nome em 1975. A maioria das pessoas conhece apenas a versão dela, mas vale muito a pena ouvir também a de Belchior pois as interpretações vocais de ambos diferem tanto que mudam ligeiramente o sentido da música. Na de Elis a revolta predomina, na da Belchior é o cinismo.
A música começa com um dos versos iniciais mais célebres da MPB, onde o eu-lírico escolhe nos dizer o que não que falar, antes de dizer o que quer falar, sendo esse tipo de negativa muito própria da poética de Belchior:
“Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo”
Esta canção é na verdade um libelo sobre a nostalgia impedindo as pessoas de aceitarem e abraçarem o novo, da tendencia das pessoas em acharem o passado melhor que o presente e da imobilidade que isso causa. A letra pode ser interpretada de maneira geral, levando-se em conta o período turbulento e retrógrado que o pais vivia (e olha como isso é atual):
“Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovensPara abraçar meu irmão
E beijar minha menina na rua
É que se fez o meu lábio
O meu braço e a minha voz”
Mas pra criar esse sentido o compositor usa como exemplo a própria música, a maneira como ignoramos os artistas novos pra sempre escutarmos os mesmo artistas velhos:
“Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências, as aparências
Não enganam, não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguémVocê pode até dizer
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou enganandoMas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem”
O famosíssimo refrão contem o resumo da teoria que a canção nos apresenta:
“Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais”
Você, sim, você mesmo, você consegue dizer que não vive exatamente como seus pais? Oras, nós, como pais, estamos cada vez mais parecidos com o que éramos na época de lançamento da canção.
Paralelas
Álbum: Coração Selvagem
Ano de Lançamento: 1977 (1975 na gravação de Vanusa)
Considero Paralelas a melhor música de Belchior, uma das melhores já gravadas em todos os tempos. A versão dele é de 1977, mas a música foi gravada em 1975 por Vanusa no álbum Amigos Novos e Antigos, mas com a letra modificada no final. A versão de Vanusa é bonita mas a letra do final não faz sentido pleno com o clima do restante da música. A versão de Vanusa possui a estrofe final assim:
“No Corcovado
Quem abre os braços sou eu
Copacabana esta semana
O mar sou eu
E as borboletas do que fui
Pousam demais
Por entre as flores
Do asfalto em que tu vais”
A versão de Belchior é assim:
“No Corcovado
quem abre os braços sou eu
Copacabana, esta semana
o mar sou eu
Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel, o que é paixão”
Percebam como a versão dele faz mais sentido. Paralelas é uma canção de letra complexa, o eu-lírico traça por meio de metáforas um cenário desolador onde um homem pode ser bem sucedido e ao mesmo tempo triste e vazio.
“E no escritório
Onde eu trabalho
E fico rico
Quanto mais eu multiplico
Diminui o meu amor”
Vejam como são delicadas as construções poéticas nesta letra. Destaco duas:
“Em cada luz de mercúrio
vejo a luz do teu olhar”
Aqui ele traça uma imagem lindíssima do eu-lírico buscando o amor e – solitário – vendo o olhar deste amor em cada luz de poste que passa com seu carro.
“E as paralelas dos pneus n’água das ruas
São duas estradas nuas
Em que foges do que é teu”
As paralelas do título nada mais são que as marcas dos pneus na água que a chuva deixa nas ruas, essas marcas que traçam uma rota por onde foge a humanidade do eu-lírico.
E percebam como a música toda remete ao carro, mostrando a mecanização do homem, que quanto mais se moderniza, mais se desapega do seu âmago e mais vazio fica.
“No apartamento, oitavo andar
Abro a vidraça e grito, grito quando o carro passa
Teu infinito sou eu”
Vá em paz Belchior! Jamais deixaremos que sua inquietude morra.
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