Algumas obras importantes para a história vêm e vão e são constantemente adaptadas, o que, dependendo do contexto, faz todo o sentido e é importante não apenas para a obra não ficar esquecida com o tempo, mas para que uma nova geração a descubra. Mad Max e Star Wars são exemplos que deram certo, já O Exterminador do Futuro e Carrie – A Estranha são exemplos que deram errado. E dentro do mercado da literatura, existem aquelas obras consideradas clássicas e intocáveis, sobretudo com grandes autores e Dona Flor e Seus Dois Maridos é, seguramente, uma delas. Esse grande clássico de Jorge Amado já teve uma grande adaptação para o cinema em 1976, onde, por décadas foi a maior bilheteria da história do Brasil, já teve também série de TV, peça de teatro e agora surge com uma nova roupagem e, claro, adaptada para os novos tempos. Não que tenha ficado mais conservadora para não “ofender” ninguém (o que foi um dos problemas de Carrie – A Estranha, por exemplo), mas, no cenário atual, é o filme certo e na hora certa: em tempos de debates sobre empoderamento feminino e do lugar da mulher na sociedade, este filme chega colocando mais pauta nessa discussão. Por muito tempo, Dona Flor e Seus Dois Maridos foi visto como um produto vulgar e de desculpa para uma nudez barata, mas isso é injusto: é um grande retrato sobre os desejos femininos e que não conseguimos ser completos, somos humanos e temos limitações. A protagonista não se completa apenas com um homem, porém, juntos, a fazem mais feliz. E isso o saudoso Jorge Amado já discutia nos anos 60, quando toda a cultura brasileira sofria censura prévia pelo regime militar. Para quem não conhece a história, Flor é uma mulher casada com Vadinho, um sujeito boêmio e mulherengo, mas que a satisfaz sexualmente. Vadinho acaba morrendo e Flor sente muito sua morte, mas decide retomar sua vida: se casa com Teodoro, um farmacêutico que a trata muito bem, mas que não a satisfaz sexualmente. Um dia, Flor pede que Vadinho volte e seu desejo é realizado, mas ele aparece em espírito, nu, e apenas ela o consegue ver. Flor é relutante no início, mas acaba por conviver com seus dois maridos: um que a sacie sexualmente e outro que é um bom sujeito para ela. O que este filme aqui acerta é em não querer imitar o clássico de 1976. Todos os envolvidos deixaram claro isso, respeitam muito a obra de Bruno Barreto, o livro de Jorge Amado, mas aqui dá uma nova roupagem. Há mais elementos do livro e da peça que não haviam sido explorado no filme clássico, apesar de o pano de fundo ser o mesmo. O mais difícil para os realizadores será vendê-lo para o grande público, já que muito se discute sobre a falta de criatividade em Hollywood e há um claro desgaste do público em remakes e reboots. Então para o grande público enxergar este filme aqui como uma refilmagem é um pulo. Mas o próprio diretor Pedro Vasconcelos (de O Concurso) deixou claro que a peça e o livro foram as maiores influências. Aliás, o próprio Pedro e Marcelo Faria estavam envolvidos na peça. Marcelo repete seu papel de Vadinho e claramente se diverte no papel. Ele acerta em não levar seu personagem tão a sério, ao passo que não tenta imitar o saudoso José Wilker no filme clássico. Marcelo está, literalmente, à vontade no papel. Leandro Hassum também se diverte como Teodoro e convence no papel, apesar dos trejeitos exagerados em algumas cenas, mas o trunfo aqui é Juliana Paes como a protagonista: ela claramente evoluiu como atriz, basta ver seu papel já histórico em A Força do Querer e não é a primeira vez que ela encarna uma personagem clássica de Sônia Braga, não há de se esquecer que ela já foi a Gabriela. Vê-la aqui foi como ver o nosso Wagner Moura na série Narcos: no primeiros minutos, o público pode estranhar o sotaque, mas que vai evoluindo a cada cena e aqui entrega uma Flor que, assim como nas versões anteriores, uma mulher frágil, carente, mas segura de si. As cenas de sexo convencem, são muito bem coreografadas, mas, tecnicamente, o filme falha, sobretudo na fotografia, com uma paleta de cores exagerada até mesmo para quem assistir sem prestar atenção e na montagem que não sabe o que quer: às vezes acelera sua história, mas que falta coerência em alguns momentos, sobretudo no segundo ato. Até a trilha é falha: o forró é presente e as músicas são boas, mas toca praticamente a cada minuto, o que chega até a ser constrangedor. Lembrando-se que, uma boa trilha não necessariamente significa jogar uma música boa em tela (alguém se lembrou de Esquadrão Suicida?) Mas Dona Flor e Seus Dois Maridos é uma grata surpresa e uma amostra de que essa história jamais fica datada. Ao contrário, merece uma nova versão de tempos em tempos, independentemente da mídia e da distribuição.