Batalha de versões 01 | Hallelujah

 

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Volta e meia me pego pensando em novas colunas pra escrever aqui pro Novo Nerd. Como o espaço me permite escrever sobre virtualmente qualquer coisa, eu acabo viajando e pensando em colunas birutas. Minha mais nova ideia (mentira, estou enrolando há mais de um ano pra escrever) é essa “batalha de versões”. Explico, a ideia aqui é pegar uma boa canção, analisar e comparar as duas ou três versões mais famosas e impactantes desta canção e no final dar um veredito sobre qual é a versão definitiva. Começamos hoje com a obra prima de Leonard Cohen, Hallelujah.

Para a coluna de hoje separei o que imagino serem as 3 melhores e mais importantes rendições dessa obra prima. A original do grande Leonard Cohen, do disco Various Positions, de 1984; a do ex Velvet Underground, John Cale, que resgatou a canção e a transformou no fenômeno cultural que ela é, no disco I’m Your Fan de 1991; e – finalmente – a versão mais famosa, a derramada rendição de Jeff Buckley no disco Grace de 1994.

Esta belíssima canção é um ponto fora da curva na história da música por sua letra cheia de significados e possíveis interpretações, nos possibilitando diversas versões da música com pegadas completamente diferentes e igualmente incríveis. Cohen, Cale e Buckley fizeram dela, cada um, uma canção completamente diferente e isso só é possível em canções realmente nascidas pra eternidade. Primeiramente nos debrucemos sobre sua complexa letra.

Quando compôs Hallelujah Cohen fez literalmente dezenas de estrofes para a canção. Na hora de gravar ele escolheu algumas e gravou no disco Various Positions. A música ficou “desconhecida” por algum tempo, até que Cale a regravou no álbum I’m Your Fan de 1991, um tributo de muitos artista a Cohen. Na época da gravação Cale pediu a Cohen para ver a letra original da canção (provavelmente por saber da lenda sobre o tamanho original da canção), Leonard então enviou um caderno com 15 páginas de letra e mandou Cale escolher o que achasse melhor, foi aí que música ganhou a letra que a consagrou. A posterior rendição de Buckley (do seu único álbum, Grace – Buckley morreu em 1997 sem ter lançado outro álbum) utiliza a mesma letra que Cale compilou. Vejamos agora as duas versões da letra:

 

Letra da versão original de Cohen

Now I’ve heard there was a secret chord
That David played, and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this, The fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah

Hallelujah (4x)

Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah

Hallelujah (4x)

You say I took the name in vain
I don’t even know the name
But if I did, well really, what’s it to you?
There’s a blaze of light
In every word
It doesn’t matter which you heard
The holy or the broken Hallelujah

Hallelujah (4x)

I did my best, it wasn’t much
I couldn’t feel, so I tried to touch
I’ve told the truth, I didn’t come to fool you
And even though it all went wrong
I’ll stand before the Lord of Song
With nothing on my tongue but Hallelujah

Hallelujah (repete muitas vezes)

 

Letra das versões de Cale e Buckley

I’ve heard there was a secret chord
That David played and it pleased the Lord
But you don’t really care for music, do you?
It goes like this, the fourth, the fifth
The minor fall, the major lift
The baffled king composing Hallelujah

Hallelujah (4x)

Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you to a kitchen chair
She broke your throne, she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah

Hallelujah (4x)

Baby, I’ve been here before
I know this room, I’ve walked this floor
I used to live alone before I knew you
I’ve seen your flag on the Marble Arch
Love is not a victory march
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah

Hallelujah (4x)

There was a time you let me know
What’s really and going on below
But now you never show it to me, do you?
I remember when I moved in you
The holy dove was moving too
And every breath we drew was Hallelujah

Hallelujah (4x)

Maybe there’s a God above
And All I ever learned from love
Was how to shoot at someone who out drew you
And it’s not a cry you can hear at night
It’s not somebody who’s seen the light
It’s a cold and it’s a broken Hallelujah

Hallelujah (repete muitas vezes)

 

Como podemos notar as duas primeiras estrofes coincidem em ambas as versões, mas a versão original possui mais duas estrofes que não estão na versão posterior, que por sua vez possui 3 estrofes adicionais e inéditas até então.

A ideia original da canção é mostrar diferentes facetas da aleluia, uma palavra muitíssimo importante na cultura e religião judaicas (e Cohen é judeu) e que não tem exatamente um significado consensual, sendo atribuída a ela sentidos ligados ao nome de Deus (o Javé hebraico). Aleluia acaba sendo uma palavra ligada portanto ao culto ao divino, mas Cohen atribui a ela na música significados diferentes. A duas primeiras estrofes, que as 3 versões compartilham, tratam claramente de amor, de um ponto até meio erótico! Percebam que o eu-lírico se dirige a um homem e fala com ele sobre um acorde secreto que Davi descobriu e que agradou a Deus, mas depois ele diz “mas você não se interessa por música, se interessa?” ou seja, o interlocutor não está prestando atenção às palavras do eu-lírico, e por quê? Porque está com cabeça em uma mulher pela qual está perdidamente apaixonado (aqui ele faz uma referência ao próprio Davi que se apaixonou perdidamente por Batseba, fazendo coisas que normalmente não faria, inclusive pecados graves, por conta dessa paixão).

Na segunda estrofe as coisas ficam mais quentes ele contesta a fé do interlocutor (“sua fé é forte mas você precisa de provas”) e dá exemplos de como ele não consegue pensar em mais nada que não a amada:

“Sua fé era forte mas você precisava de provas
Você a viu tomando banho no telhado
A beleza dela e o luar arruinaram você”

Na sequência ele usa algumas referências e um tom mais erótico:

“Ela amarrou você a uma cadeira da cozinha
Ela destruiu seu trono, e cortou seu cabelo
E dos seus lábios ela tirou o Aleluia”

A imagem da mulher amarrando ela na cadeira é ao mesmo tempo erótica e emasculante, emasculação esta que progride já que ela destrói o trono (o reinado, a vida, extrapole como quiser) e lhe corta o cabelo, tal qual Dalila fez com Sansão. No final ela tira dos lábios dele uma aleluia, aqui o sentido pode ser tanto de tirar a graça, a alegria, a crença ou apego à Deus (no sentido de não querer pensar mais em nada que não na amada) ou também a ideia de que ele deu a ela a aleluia, como um amante dando tudo ao outro. Os trechos são todos interpretativos e usam claramente trechos bíblicos, mas o que não dá para negar é o fato de que a religião aqui é só pano de fundo e que o foco é o amor e um amor físico e não só espiritual. Curioso que esta canção tenha criado um fandom religioso e que seja até tocada em cultos cristãos… Provavelmente é a música mais mal interpretada de todos os tempos, só Born in the USA do Bruce Springsteen foi tão mal interpretada quanto.

A letra da versão de Cohen continua com uma contestação do que poderia ser a profanação feita pelo próprio cantor ao usar um símbolo religioso judaico tão forte de maneira não-sacra:

“Você diz que eu falei o nome em vão
Eu nem mesmo sei o nome
Mas se eu fiz, bem, então, o que isso realmente importa pra você?”

Vejam que ele cita o segundo mandamento (não falar seu santo nome em vão) e depois contesta dizendo que nem mesmo sabe qual o nome. Aqui ele faz uma referência aos estudos da cabala, que buscam o verdadeiro nome de Deus, é algo bem profundo e espiritual variado do judaísmo). Aí ele completa com um questionamento muito válido, se ele fez isso mesmo, o que importa pras outras pessoas? A espiritualidade não é afinal algo íntimo?

“Existe uma lâmina de luz
em cada palavra
E não importa qual você ouviu
a sagrada ou a quebrada Aleluia”

Aqui ele expõe a ideia central da música que são as diferentes formas da “aleluia”, pode então existir a forma sagrada da revelação ou a forma quebrada, ou mais milhares de formas, como a forma sexual que ele apresenta nas primeiras duas estrofes.

“Eu fiz meu melhor, não foi muito
Eu não podia sentir então eu tentei tocar
Eu disse a verdade, eu não vim aqui pra te enganar
E mesmo que dê tudo errado
Eu ficarei em pé diante do Senhor da canção
Com nada na minha língua que não a Aleluia”

Aqui ele tenta mostrar que a ideia das diversas aleluias não é profana, porque ele fez o melhor dele e mesmo que tenha dado completamente errado ele ficará em pé em frente ao Senhor da canção (obviamente Deus) – numa ideia que foge da reverência religiosa, ele não se ajoelhará, ele ficará em pé – com nada que não seja a Aleluia. Qual aleluia? a sagrada ou a quebrada, ou a do amor e do sexo? Ele deixa no ar.

Vejam que a canção trata de religião, mas o tratamento é completamente não religioso, é espiritualizante, trazendo as tradições religiosas pra um campo humano, um campo de experimentação e nunca de reverência ou prostração. De fato uma letra brilhante. Olhemos agora as 3 estrofes “inéditas” que Cale escolheu pra sua gravação.

“Talvez eu já estivesse aqui antes
Eu vi este quarto, eu andei neste chão
Eu vivia sozinho antes de conhecer você
E eu vi sua bandeira no arco de mármore
Um amor não é uma marcha da vitória
É um frio e sofrido Aleluia

Mas houve um tempo em que você me deixava saber
O que realmente acontecia lá embaixo
Mas agora você nunca me mostra, não é?
Mas você se lembra quando eu entrei em você
E a pomba sagrada também entrou
E todo o suspiro que dávamos era um Aleluia

Talvez haja um Deus lá em cima
E tudo que eu já aprendi sobre o amor
Era como atirar em alguém que tirou você
Não é um choro que você pode ouvir de noite
Não é alguém que viu a luz
É um frio e sofrido Aleluia”

Nossa, tem muita informação aqui, podemos ver que Cale foi bem coerente nas escolhas, as três estrofes possuem uma temática afim, a ideia da perda. Percebam que aqui ele não tem mais a amada, ela foi embora, alguns versos deixam isso bem claro, como “E tudo que eu já aprendi sobre o amor/Era como atirar em alguém que tirou você”. Na primeira estrofe ele parece estar tanto falando com a amada quanto falando com Deus (podemos entender, portanto, a confusão temática que muitas pessoas fazem com a música) ele diz que se lembra que vivia sozinho antes de conhecê-la (a amada ou Deus). A estrofe seguinte reforça essa duplicidade quando ele diz “Mas houve um tempo em que você me deixava saber/O que realmente acontecia lá embaixo”, com a ideia de Deus morar lá em cima e ele sendo um homem de Deus não saber o que se passa “lá embaixo”, ou seja, com os mundanos. Na sequência Cohen volta a colocar um sabor erótico na letra, ainda mais forte do que antes, todo o trecho “Mas você se lembra quando eu entrei em você/E a pomba sagrada também entrou/E todo o suspiro que dávamos era um Aleluia” pode ser interpretado tanto da maneira religiosa quanto como uma descrição de uma relação sexual (Cohen é genial demais).

A última estrofe ele reforça a ideia de aleluias diversas, boas e más, lembrando que a estrofe onde ele apresenta o tema não está nesta versão, então a percepção disto nesta letra é bem diferente, ocorrendo com os versos finais da terceira e quinta estrofes “É um frio e sofrido Aleluia”. Ou seja, a ideia de termos aleluias com sentidos diferentes aparece aqui, mas não é explicado, então a impressão que a letra dá é mais de um abandono da religiosidade (não necessariamente da espiritualidade) por conta de uma perda (algo bem comum na vida inclusive).

Acho a letra original de Cohen melhor, mas a versão montada por Cale é ótima também. Mas em qualquer versão da letra é completamente equivocada a interpretação puramente religiosa da canção que tanto vemos por aí. Vamos ouvir as três versões para que possamos compreender melhor.

A versão original de Leonard Cohen

 

A versão de John Cale

 

A versão de Jeff Buckley

 

Percebam que a versão de Cohen é menos melódica que as demais, como é típico do cantor inclusive, ele adota um coro no refrão que dá um ar gospel que as outras versões não possuem, esse coro fica mais sutil nas versões ao vivo, que na minha opinião são melhores que esta de estúdio. A versão de Cale claramente serviu de base para todas as outras versões de Hallelujah posteriores, inclusive a de Buckley, é bem mais melódica e emotiva que a de Cohen, mas bem menos que a de Buckley, que é efetivamente a mais emocionante das três. Para fazer este post eu escutei milhares de vezes cada versão e – como vocês viram – fui bem a fundo nas letras, antes a minha versão favorita era a do Jeff Buckley, como imagino que seja a da maioria das pessoas. Após fazer todo este estudo eu mudei de opinião e acho que na somatória geral das coisas a melhor versão é mesmo a de Cohen, com sua letra absolutamente brilhante e sua pegada mais simples, que chega a transmitir uma ideia de desdém. Todas as três versões, no entanto, são muito próximas em qualidade vale dizer.

 

Versão Vencedora: Leonard Cohen

Cohen_BV

 

Extras: Vale a pena ouvir as versões ao vivo de Cohen para a canção, escolhi esta pra compartilhar com vocês:

 

Também vale a pena ouvir essa versão linda que três crianças fizeram no The Voice Kids da Alemanha:

 

Nerd: Arthur Malaspina

Arthur Malaspina é professor de português, nerd irrecuperável e humorista ocasional. Também não consegue se manter longe de discussões, seja na vida real, seja na internet. Tem opinião formada sobre praticamente tudo no mundo... mas não se preocupem, fica mais legal com o tempo. Co-proprietário do blog Han Atirou Primeiro (hanatirouprimeiro.blogspot.com.br). Twitter: @arthurskywalker

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