Quando soube que uma nova adaptação de Grande Sertão: Veredas estava a caminho, ambientada nas periferias de um mundo distópico, e ainda com direção de Guel Arraes, imaginei que seria uma obra memorável. Então, imagine a minha enorme decepção ao constatar, depois de 1h e 48 min de filme, que as qualidades de Grande Sertão ficaram apenas no campo da expectativa criada por mim. Havia uma boa ideia, um bom elenco, um renomado diretor e uma das histórias mais ilustres da literatura brasileira. Sendo assim, o que deu errado?
Grande Sertão tem ideia promissora com execução decepcionante
Com direção de Guel Arraes, Grande Sertão chega com a ideia de adaptar o aclamado romance de João Guimarães Rosa para um contexto distópico, transportando o sertão para as periferias urbanas. A trama explora a vida de Riobaldo, um jagunço em meio a um conflito entre policiais e bandidos. Em suas memórias e dilemas morais, ele se questiona sobre a existência do bem e do mal e enfrenta sentimentos profundos por Diadorim, um enigmático companheiro de armas.
A proposta era trazer essa narrativa para um ambiente sombrio e futurista, enquanto explora temas universais como amor, violência, e a luta incessante pela justiça. Uma ideia realmente interessante, que tem um apelo para um público amplo e mais jovem. Uma ótima maneira, inclusive, de despertar o interesse desse espectador em conhecer a obra original, como acontece com tantas outras adaptações.
Desafios na escolha narrativa
Essa ousada ideia, porém, encontrou seu obstáculo na escolha narrativa e, consequentemente, na sua execução. Ao optar por manter o texto original de Guimarães Rosa, uma linha artística foi delimitada. E seria incrível, se o material fonte não fosse tão divergente do que estava sendo mostrado em tela. Nada se encaixa. Algumas cenas funcionam visualmente, mas o que é dito não combina, soando como uma costura malfeita.
Ao escolher a fala culta, em detrimento da coloquialidade, Guel Arraes restringe seu filme aos olhares de um público mais seleto, enquanto dificulta a comunicação para um público abrangente, que dificilmente se relacionará com a obra. Essa barreira linguística, somado aos ares de “filme de arte” atribuídos à Grande Sertão, culmina na inevitável elitização da produção. Então, se você não leu a obra original, ficará perdido. Principalmente pelo fato de muitas passagens não fazerem o menor sentido no contexto apresentado.
E ser um filme de arte, por si só, não seria um problema. Afinal, nenhum filme é obrigado a ser uma coisa ou outra. O problema está mais no fato de que Grande Sertão não demonstra ser aquilo que é. Tampouco executa bem qualquer uma de suas facetas. A teatralidade, tão característica da direção de Guel Arraes e brilhantemente inserida em O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, aqui não coube. Soando, por vezes, falso e forçado. Servindo apenas para distanciar ainda mais seu público.
Um outro problema que grita a plenos pulmões é a edição, que reforça, ainda mais, a dissonância entre a linguagem e a ambientação. Cenas que não se conectam, que levam a lugar nenhum, que parecem pertencer a momentos diferentes de forma não proposital ou, ainda, que evocam a mais profunda vergonha alheia.
Grande Sertão tem atuações caricatas
Grande Sertão deixa claro, mais uma vez, que um bom elenco, apenas, não é garantidor de um bom desempenho ou uma boa produção. Apesar do talento, grande parte foi prejudicada pelo roteiro e direção. A maioria existe em dois tons, ambos caricatos demais para despertar qualquer outra emoção do espectador que não seja o tédio. Ou se está gritando, ou chorando. Às vezes, os dois ao mesmo tempo. Um exagero e afetação que caberiam perfeitamente em um teatro. Mas em um cinema, soa destoado.
Caio Blat e seu Riobaldo, hora ou outra assumia um estranho sotaque nordestino que, em vários momentos, me confundiu quanto à geolocalização do filme. Exagerado em alguns momentos, mas mantinha um tom mais adequado. Aqui, retratado como um professor que se junta ao bando de Joca Ramiro por sua amizade íntima com Diadorim. Uma narrativa que tenta levantar reflexões sobre amor e transexualidade de uma forma pouco clara e até equivocada. Ainda expõe a homofobia de Riobaldo sem gerar muitas discussões com isso.
Grande Sertão é equivocado e demonstra falta de cuidado com temas delicados
Luisa Arraes, que interpreta Diadorim, a meu ver, tem um dos piores desempenhos. Seja pelas coreografias de luta, que são sofríveis, seja por reações equivocadas. Mas o que mais me intriga é o fato de que Diadorim usava roupas um tanto justas, com um toque sexy até, que deixava bem claro que se tratava de uma mulher. Ninguém desconfiar de que ela era uma mulher é totalmente incompreensível.
Grande Sertão, ainda, fracassa em tentar levantar uma pauta tão importante quanto a da transexualidade. Não se aprofunda, não esclarece e ainda comete duas gafes absurdas ao tratar do assunto. Ao mesmo tempo que Diadorim dá a entender que só usa roupas masculinas como um disfarce para poder participar do bando, uma fala no final do filme reafirma a ideia de que ele é, de fato, um homem trans. Porém, a forma desrespeitosa como o tema é levantado me faz preferir acreditar na primeira opção.
O destaque positivo fica com Eduardo Sterblitch, como Hermógenes. Apesar da bidimensionalidade da personagem, é muito impressionante o quanto ele conseguiu se distanciar dos ares cômicos, de onde é primariamente conhecido. Luis Miranda, como Zé Bebelo também faz o melhor que pode com o texto que tem. Rodrigo Lombardi e seu Joca Ramiro está operante. Sem passagens memoráveis ou falhas homéricas.
Não foi dessa vez
Resumindo, Grande Sertão é a materialização máxima de que boas ideias e talento não são suficientes para garantir um bom filme. Ainda mais se o longa em questão tiver escolhas narrativas e estéticas tão equivocadas. Assim como em outras obras que trouxeram a mesma proposta, como Romeu + Julieta, o preciosismo quanto a fidelidade à obra original resultou em um filme cansativo e pouco acessível. Daqueles que você não vê a hora que acabe.
Com uma abordagem mais flexível e atualizada, esse certamente, seria o momento perfeito para gritar aos quatro cantos “viva o cinema nacional”. Infelizmente, não foi dessa vez. Para mim, pelo menos. Talvez seja uma excelente escolha para os amantes da literatura clássica e do texto de Guimarães Rosa. Mas, quem não é versado no palavreado rebuscado do português arcaico achará enfadonho, e cairá no profundo tédio antes mesmo do segundo ato.
Grande Sertão estreia hoje, 06 de junho, somente nos cinemas.
Posts Relacionados:
Haikyu!! The Dumpster Battle é Uma Jornada Que Excede Expectativas
Jardim dos Desejos: Uma Intrigante História de Redenção e Segredos Ocultos
Imaculada: O Lado Oculto dos Conventos Revelado em um Thriller Envolvente
Não esquece de seguir o Universo 42 nas redes sociais: