A Maestria de Yorgos Lanthimos ao se Manter Fora da Zona de Conforto
Posso contar nos dedos os filmes que me deixaram inerte, encarando a tela por vários minutos enquanto os créditos subiam após longas horas de profundo deleite. Pobres Criaturas é um deles. Uma façanha do diretor Yorgos Lanthimos, responsável por filmes igualmente impactantes, como A Favorita, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado. A quantidade, e qualidade, do subtexto é algo que precisa de tempo para ser degustado e digerido. Assuntos que vão desde processos de aprendizado, passando por liberdade feminina, até ideais boêmios e socialismo.
Renascer e Reimaginar: A Narrativa Surreal de Pobres Criaturas
Pobres Criaturas nos conta a história da jovem Bella Baxter, uma mulher que, após cometer suicídio, é trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter. Mas, ao renascer, ela se torna uma criança em um corpo de mulher. Com sede de conhecimento e querendo ver mais do mundo, ela foge com um advogado e viaja pelos continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella exige igualdade e libertação.
Adaptação do livro homônimo, Pobres Criaturas traz uma versão reimaginada de Frankeistein. Com uma roupagem surrealista e psicodélica, Yorgos Lanthimos consegue se superar e apresenta a melhor de suas obras. Dividida em capítulos, como já é comum em seus filmes, e com atuações e fotografia estonteantes, o filme nos apresenta muito mais que estética. Indo fundo em temas que, apesar de antigos, se fazem presentes até hoje.
Beleza, Verdade, Liberdade e Amor
O longa mostra como tabus e conceitos de polidez acabam tolhendo a mulher ao longo de seu processo de crescimento. O “não faça isso. Não faça aquilo.” diário acaba por limitar os anseios femininos e, por fim, cerrando-as em um casulo de dogmas sociais. Bella, aqui, simboliza essa quebra de paradigmas. Uma revolta pessoal para um passado que ela desconhece, mas que, de alguma forma, ainda está presente e é motivador para suas ações.
Dentre as várias reflexões e associações que Pobres Criaturas me proporcionou, uma que me veio à mente enquanto assistia, principalmente por conta de sua passagem marcante por Paris, foi o lema boêmio de Mouling Rouge – Amor em Vermelho: Beleza, verdade, liberdade e amor. Explorados aqui sutilmente, como acordes de uma sonata elegante. A beleza da protagonista, que, inclusive, se chama Bella. A verdade em suas palavras e ações. Seus anseios de liberdade e aventura. Seu amor pela nova vida. Talvez apenas uma coincidência, mas o tom surrealista presente em ambas as obras tornou essa conexão inevitável.
Uma Sonata Cativante de Crescimento e Desafios
Pobres Criaturas nos brinda com a que julgo ser a melhor performance de Emma Stone. O carinho e o cuidado dedicados à personagem é perceptível, permitindo que o espectador se delicie e se apaixone por Bella na mesma intensidade que seus coadjuvantes em tela o fazem. Isso faz com que cada nuance de seu período de crescimento seja apresentada de forma clara para o público.
E é preciso falar, Emma Stone carrega nas costas todo o primor da produção. E digo isso sem desmerecer o elenco de apoio, que é igualmente incrível. Porém, tal qual uma sonata, Bella é o elemento principal, o instrumento escolhido para conduzir toda a cantata. Toda história gira em torno dela e de seu amadurecimento. Um tropeço e tudo estaria fadado ao fracasso. Sem a entrega e desprendimento da atriz, principalmente para cenas de nudez e sexo explícito, o projeto não seria possível.
Sim, tem muita cena de nudez e sexo explícito. Com nudez frontal masculina e feminina. Todas com propósito e fundamentais para a trama, conduzidas de uma forma não ofensiva. A maioria é até cômica, mas sem reduzir seu peso. O longa, inclusive, teve um coordenador de intimidade no set. Um profissional responsável por supervisionar e garantir o conforto e a segurança dos atores em cenas como essas.
Mark Ruffalo e Willem Dafoe em Papéis Inusitados
Pobres Criaturas ainda traz Mark Ruffalo como um vilão, divergindo totalmente de sua fama de bom moço. Sua personagem, Duncan Wedderburn, é mesquinho, ardiloso e ciumento. Um homem que mantém a postura indiferente enquanto pensa estar se aproveitando de uma jovem inocente, mas se revela por completo ao se dar conta de que Bella também o está usando. Um arco assustadoramente real para muitas mulheres.
Já Willem Dafoe, e seu Godwin Baxter, se apresenta como um ser que valoriza a experiência, a tentativa e erro. E vemos isso nas dezenas de experimentos bizarros espalhados em sua casa. Como criador, sua relação com Bella é paternal e também atravessa as eras de amadurecimento, mas, nesse caso, como pai. Desde o cuidado exagerado, aquele que confere aos pais a certeza de que nada pode substituir a segurança de casa, até o entendimento de que para evoluir, é preciso que um filho tenha suas próprias experiências. Afinal, amar também é deixar ir.
O elenco de Pobres Criaturas ainda conta com Ramy Youssef (Mr. Robot), Christopher Abbott (O Primeiro Homem), Margaret Qually (Maid), Jerrod Carmichael (Vizinhos), Laurent Borel (Asterix & Obelix: O Reino do Medo) e vários outros. Todos incríveis em suas participações.
Robbie Ryan e a Estética Marcante de Pobres Criaturas
É curioso e fascinante acompanhar a curva de aprendizado de Bella, sempre sendo cercada de elementos narrativos proporcionados pela excelente direção e fotografia. Seja uma lente, a cor ou trilha sonora, tudo é criado para corroborar a ideia de evolução da personagem e marcar em que momento da vida ela está. Yorgos Lanthimos e Robbie Ryan, definitivamente, fazem jus à suas indicações ao Oscar, em suas respectivas categorias.
Enquanto balbucia palavras e ainda está aprendendo a caminhar e se portar, tudo é preto e branco, simples. As lentes tipo olho de peixe são usadas como metáfora para o olhar seletivo de uma criança, que tende a focar mais no que está à sua frente, enxergando os elementos ao redor como peças menos interessantes. Até a trilha sonora que acompanha este primeiro momento, é composta de notas soltas e levemente desafinadas, como uma criança dedilhando o piano de brinquedo que acabara de ganhar.
Quando Bella finalmente deixa a casa de seu criador e tem sua primeira experiência sexual, o mundo ganha cor, a trilha ganha acordes e é animada. Tudo é brilhante e reluzente, como é cada descoberta. E, à medida que a personagem vai aprendendo e toma conhecimento dos horrores do mundo, como a desigualdade, a exploração e a violência, a fotografia novamente evolui e ganha tons mais sóbrios.
Ambientado na era vitoriana, tem como base o neogótico. Contudo, é possível ver referências de Art Nouveau, Barroco, surrealismo e expressionismo. Isso a torna uma obra visualmente deslumbrante. Porém, o brilhantismo não se restringe ao âmbito estético, se estendendo também a uma direção acurada, que sabe conduzir um elenco formidável sem cair nas armadilhas de seus egos. Verdade seja dita, Bella Baxter é uma personagem que facilmente poderia se tornar insuportável se fosse dirigida um tom acima ou abaixo.
Pobres Criaturas é Poesia Visual
Assim sendo, Pobres Criaturas é uma obra cinematográfica extraordinária que explora temas profundos e desafia tabus. Um filme que transcende o estético, oferecendo uma reflexão envolvente sobre amadurecimento e liberdade. De fato, Yorgos Lanthimos consegue fazer, em seu longa, uma tradução sublime das injustiças ao despudor de uma vida perfeita pelas suas imperfeições.
Eu poderia discorrer sobre vários outros aspectos que Pobres Criaturas foi capaz de abordar de forma tão autêntica, como feminismo, socialismo e consciência de classe. Contudo, não acho que sintetizaria de forma tão eficiente tantos ideais e saberes vivenciados na trajetória de nossa protagonista. Restando a mim apenas recomendar que assista ao filme.
Pobres Criaturas estreia dia 1 de fevereiro nos cinemas brasileiros e recebeu 11 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Direção e Melhor Filme.
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