“Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder sua alma?” (Marcos 8:36)
A vida inteira somos impulsionados a tomar decisões. Desde escolhas mais superficiais como qual sabor de sorvete preferimos ou a brincadeira que gostamos mais na infância, até escolhas mais profundas e determinantes como qual profissão iremos seguir no futuro, sempre estamos sendo obrigados a optar por um caminho ao invés de outro.
Algumas vezes até conseguimos uma espécie de concessão da vida e podemos encontrar um meio termo na nossa estrada. Um nem lá nem cá, como diriam alguns. Só que na maioria das vezes, infelizmente (ou quem sabe, felizmente?) não é isso que ocorre. Muito pelo contrário.
Ao decidir tomar determinada direção, consequentemente acabamos tendo que abdicar de outras possibilidades que nos são ofertadas. Afinal, não tem como ter o melhor de dois mundos. Se assim fosse, perderíamos a oportunidade de errar, aprender com nossos erros, para assim, amadurecer. E existe presente melhor da vida do que a chance que ela nos dá, diariamente, de adquirir sabedoria através do poder de escolha que todos nós temos?
Essas são apenas algumas das inúmeras reflexões que fazemos ao ler o primeiro livro de estreia do autor nacional Uranio Bonoldi, A Contrapartida.
O autor, que atua como palestrante e consultor em processos de tomada de decisão, estratégia empresarial e governança corporativa, além de ter trabalhado por mais de 30 anos como diretor e presidente em grandes empresas, nos traz uma obra de ficção cheia de reviravoltas e muito suspense.
A trama começa de trás pra frente, exatamente no ano de 2016, mostrando as consequências das atitudes do protagonista Tavinho, sendo a maior e mais assustadora pra ele, a falta de reconhecimento de si mesmo, ou seja, a perda da própria identidade.
“Meu Deus, sou um monstro!?” (Tavinho em A Contrapartida)
Logo após isso, a história volta 12 anos atrás, para explicar o que aconteceu na vida daquele jovem para ele ter chegado naquele ponto. Conhecemos então, Tavinho, com apenas 13 anos e, cheio de dúvidas e medos na cabeça. Queria ser um ótimo aluno, passar para o curso de Medicina e se tornar um brilhante profissional no futuro. Tudo isso para honrar a memória do seu falecido pai, um professor querido por todos que morreu de forma brutal num assalto, e trazer orgulho para sua mãe, uma mulher íntegra e dedicada.
Contudo, a sua realidade não condizia com o futuro que sonhava. Apesar de todos os esforços que ele e sua mãe faziam para que suas notas melhorassem, nada adiantava. Tavinho simplesmente não conseguia absorver o conteúdo estudado.
O que o deixava cada vez mais frustrado e preocupado, pois até sua vida amorosa dependia de seu desempenho acadêmico. Martha, a menina que ele era apaixonado, era uma aluna excelente e por causa disso, ele imaginava que não teria chance com ela caso não progredisse na escola.
E é aí que surge Iaúna. Para auxiliá-lo na conquista de seus sonhos, ou pelo menos, era o que ela queria fazê-lo acreditar.
Iaúna é uma índia que foi trazida para São Paulo por Cristina, mãe de Tavinho, devido ao perigo que estava correndo de ser assassinada por garimpeiros que queriam eliminar membros da sua tribo. Juntando o fato de ser uma mulher esperta, curiosa, carismática, amorosa e ainda saber se comunicar muito bem em português, por incrível que pareça, Cristina acaba criando uma afeição por aquela índia, convencendo seus pais a abrigarem em sua casa. Mesmo conhecendo-a há pouquíssimo tempo.
E assim, Iaúna vira um membro da família Albuquerque. Com o passar dos anos, Cristina se casa, se torna mãe e a índia continua presente. Dessa vez, cuidando de seu filho e sendo assim, praticamente uma segunda mãe para Tavinho. O único que parecia desconfiar da presença daquela mulher era o pai do garoto e por causa disso, também acaba pagando um preço alto.
Afinal, decidir desconfiar de alguém e deixar isso claro não deixa de ser uma escolha. Quando expomos o que pensamos, desejamos e sentimos, estamos sujeitos a consequências nem sempre benéficas para os outros e para nós mesmos.
Desesperado para realizar seus objetivos e agradar a mãe, Tavinho recorre à velha índia, que lhe oferece uma oportunidade inusitada. Ao beber o elixir preparado por ela, o menino conseguiria tudo que queria. Só que não era uma bebida qualquer. Tinha muito muito mais do que apenas ervas indígenas nos ingredientes. Era um elixir tão especial que ao tomá-lo a pessoa adquire características de alguns ingredientes utilizados em sua preparação.
A questão que ronda a narrativa é; vale a pena passar por cima de todos os nossos valores éticos e morais apenas para benefício próprio? E por mais que tenha o desejo de satisfazer outras pessoas também, não deixa de ser uma atitude egoísta, pois queremos o respeito alheio pra alimentar nosso ego, na maioria das vezes. A vaidade humana que move a maioria das nossas decisões desastrosas.
Queremos ser amados e aceitos pelos outros custe o que custar, pois não há ser humano que suporte o peso que uma rejeição traz consigo. Vivemos tão obcecados com isso que acabamos por fechar os olhos para a possibilidade das pessoas não nos enxergarem de maneira depreciativa como pensamos. Às vezes somos nós mesmos que nos vemos sob a lente do fracasso, não o externo.
E qual o peso de nossas decisões na vida dos outros? Será que ao fazer algo que nos afeta profundamente, não estamos ao mesmo tempo, afetando quem está ao nosso redor?
Vale tudo para realizar nossos sonhos ou existem limites rígidos que nunca devem ser ultrapassados caso não queiramos perder nossa humanidade? Os fins sempre justificam os meios ou dependendo dos meios devemos desistir dos fins ou ao menos, tentar outras alternativas?
São muitos questionamentos que passam pela cabeça de Tavinho e dos leitores de A Contrapartida ao saber no que consiste o tal elixir de Iaúna.
Porém, não podemos cair no erro de culpar sua cultura, pois cada cultura é única e tem seus prós e contras. A cultura indígena é muito importante para a formação da identidade nacional e não podemos desprezá-la por não estar de acordo com seus rituais. Mesmo que não a entendemos, precisamos respeitá-la acima de tudo.
Portanto, vilãnizar Iaúna por suas origens também não é uma decisão sensata. O que nos faz questionar seu caráter é em relação às manipulações que ela faz com todos e principalmente, com aquela família que acolheu-a quando ela mais precisava. É muito mais uma questão de “ingratidão” do que julgamentos culturais. Mas Iaúna é uma personagem tão complexa e bem construída, que não dá pra ser encaixada numa única categoria.
Ela é fria, calculista, egoísta (mesmo quando acredita que está agindo por um bem maior), altamente manipuladora, dentre outras características bem negativas. Mas em contrapartida, talvez (eu disse talvez), da maneira dela, ela realmente ame o Tavinho e acredite que esteja fazendo o melhor pra ele. Às vezes, até estamos bem intencionados, mas as consequências são perigosas. Como diz o ditado popular; “de boas intenções o inferno está cheio”.
Outro ponto interessante sobre Iaúna é a questão da hipocrisia humana de justificar seus atos em nome da justiça e do julgamento da moral alheia. Quem é ela pra apontar o dedo na direção alheia se ela faz o mesmo e até pior? E ela faz isso tão bem que alguns leitores podem até ficar em dúvida se ela é de fato uma serial killer ou na verdade, é apenas uma justiceira social pronta para eliminar seres “malignos” da cidade de São paulo.
Nesse aspecto, não pude deixar de comparar a personagem criada por Uranio com o Dexter Morgan da série estrelada e produzida por Michael C. Hall. Ambos geram essa dualidade na cabeça daqueles que acompanham suas histórias. Afinal, são grandes vilões ou apenas mocinhos incompreendidos? Eu diria que são os dois. Ou melhor, nem uma coisa nem outra. Somente humanos. Com toda a carga negativa de falhas, vícios e imperfeições em geral, que essa palavra pode carregar junto de si.
Em relação à linguagem do livro e a organização dos capítulos, atingem bem o propósito que o autor deseja. Seu objetivo era conquistar o público jovem e jovem adulto e, como a linguagem é bem tranquila, acessível, e os capítulos são curtinhos, contribui para aproximá-los da trama narrada, os prendendo a cada passar de páginas, até o fim da obra. Esse fator dá um aspecto cinematográfico à história, como se a narrativa fosse pensada desde o início para conquistar as telonas (estamos na torcida!).
Uranio consegue ser denso sem cair na prolixidade. A Contrapartida sabe ser profunda mesmo com seu ritmo de narrativa acelerado. E é assim que todo thriller de sucesso, digno do selo Stephen King de qualidade, é, ou ao menos, deveria ser.
E que venha a continuação com mais informações sobre Iaúna e principalmente, sobre suas reais intenções. Pelo menos assim espero. Quanto mais puder aprofundar essa personagem, melhor será para nós leitores.
Confira o canal do Uranio no youtube:
https://www.youtube.com/channel/UCIGtP-HI21Qxyyf3kAWYiWg