Primeiramente, gostaria de deixar claro que este texto não tem a intenção de humilhar, tirar sarro ou degradar de maneira alguma nenhuma religião. É apenas o relato de uma história que aconteceu comigo, não tendo a intenção de estereotipar, maltratar, demonizar ou ofender. Lembre-se de que este é um relato de uma memória de infância e pode ter discrepâncias.
Você alguma vez já passou por alguma situação que, depois de um tempo, parece mais com um sonho ou com uma alucinação muito realista? Até alguns meses atrás eu teria respondido não a essa pergunta. Mas deixe-me começar do começo:
Eu estava indo tomar um café com meus colegas de trabalho e, por algum motivo, começamos a falar sobre experiências estranhas, então eu puxei o assunto de situações-tão-esquisitas-que-até-parecem-sonhos-ou-uma-brisa-muito-forte. Eu contei meu causo para meus colegas e depois de terminar todo mundo estava olhando para mim tipo “você tem noção de como isso foi esquisito?”
Eu nunca fui uma pessoa muito sociável quando estava na escola – na verdade era famosa por andar sempre com a cara fechada. Então meu círculo de amizades era limitado a apenas 3 amigas. Uma dessas minhas amigas sempre teve uma ligação muito forte com o mundo espiritual e coisas místicas, mas ela tinha uma paixão muito forte pela cultura cigana.
Aos 12 anos de idade, tudo que eu sabia sobre a cultura cigana era o que tinha visto sendo representado no desenho O Corcunda de Notre Dame (1996), da Disney – ou seja, muita dança, música e roupas bonitas. Então, quando minha amiga me chamou para uma festa cigana, eu topei, e até disse que levaria minha roupa de cigana (sim, eu tinha uma, graças a uma apresentação de dança que fiz quando tinha 6 anos, e ainda cabia em mim).
Depois de combinar tudo com os meus pais, empacotei minhas coisas e esperei o dia chegar. Minha ansiedade para o evento comparava-se a uma viagem até a praia; eu só pensava em me divertir e em como seria legal quando finalmente chegasse lá.
Eu, Beatriz, tenho 24 anos agora e ainda tenho muito receio de viajar sozinha, então imagina meu medo ao descobrir, no meio do caminho, que a tal festa seria fora da cidade de São Paulo, numa chácara à esquerda de onde Judas perdeu suas botas, esquina com meu-Deus-o-que-eu-estou-fazendo-aqui. Mas até então eu estava com a minha amiga e a mãe dela.
Talvez a viagem tenha demorado uma hora, talvez uma hora e meia, mas para mim foi uma eternidade. Entretanto, eu tentava me concentrar no fato de que eu estava com a minha amiga e ela estava acostumada a ir nesse tipo de evento, então resolvi confiar nela.
Mas minha ansiedade gritou ao pé do meu ouvido quando a mãe dela nos deixou na frente da chácara e disse que voltaria no dia seguinte para nos pegar.
Então, veja bem, éramos duas crianças de 12 e 13 anos, no meio do nada (se eu aos 24 não tenho noção geográfica, imagine aos 12) e sozinhas. É claro que a mãe dela conhecia todos que estavam lá, era amiga de longa data de alguns e tinha outras crianças da nossa idade ali também. Mas eu já não estava gostando da sensação de desamparo.
Quando chegamos lá, já estava anoitecendo e fazia muito frio e eu não estava vestida para aquela temperatura. Minha blusa era muito leve, vestia regata por baixo e, para aquele frio, meu jeans parecia fino demais. Então entramos na casa.
A partir daí as coisas começaram a ficar ainda mais esquisitas. Talvez minha memória seja falha, e eu esteja narrando agora algo completamente diferente do que eu realmente presenciei, mas isso foi o que minha cabeça de menina de 12 anos assustada estava vendo.
A casa estava escura, e não era mais aconchegante do que o lado de fora. Eu via algumas pessoas andando pelos corredores carregando velas (talvez a luz tivesse acabado, ou era esse mesmo o espírito da coisa), então me lembro mais de sombras projetadas nas paredes do que de rostos de fato. Fomos até um cômodo onde havia mais ou menos uns seis beliches alinhados nas paredes, quase todos estavam ocupados com mochilas e outras bagagens em cima dos colchões. Ocupei um dos beliches de cima, tentando não tirar os olhos da minha amiga.
Então ela me chamou para ir ao quintal. Eu a segui e quando cheguei nos fundos, vi que tinha um campinho de futebol, todo gramado, com as traves já descascadas e marcados aqui e ali com ferrugem, mas o que me chamou atenção foi a fogueira gigantesca que havia no centro. Eu conseguia sentir o calor do fogo a cinco metros de distância e havia muitas pessoas lá. Todas batiam palmas e havia talvez uma dúzia delas dançando em volta da fogueira tocando o que parecia ser um pandeiro.
Minha amiga já tinha entrado na onda. Ela se balançava de um lado para o outro e cantarolava junto. Eu ainda não estava muito segura de tudo aquilo; estava com fome, com frio e ainda parecia um ratinho assustado. Eu queria ligar para os meus pais e pedir para que eles me buscassem porque, encarando a porta dos fundos por onde eu havia saído, e notando a casa vazia e fria, eu não sentia uma sensação boa. Veja bem, além de estar amedrontada, estava em um lugar que eu não conhecia, no meio de um monte de gente estranha, com uma menina de 13 anos como companhia.
Crescendo, eu aprendi observando minha irmã que se você enche o saco para ir a algum lugar, você tem que ficar lá pelo menos por umas duas horas. Então, apesar de estar com meu celular no bolso, eu não ia ligar para os meus pais saírem de São Paulo e irem até onde eu estava só porque eu estava com medo de ficar. E por isso acabei ficando.
Não me lembro se alguém veio falar com a gente, não me lembro se fiquei do lado da minha amiga o tempo todo, só sei que uma hora se passou e eu estava mais aquecida por causa do fogo. Olhei para o lado e vi que minha amiga estava chorando, mas sorria de um jeito esquisito. Ela me olhou bem na hora que eu ia perguntar se ela estava bem. Ela sorriu mais largo e atrás de mim uma voz de mulher disse:
– Venham dançar meninas! – ela nos entregou um copinho de suco. – A fogueira está queimando alto, é mais gostoso dançar quando ela está assim.
Eu sei o que você deve estar pensando: nossa, com certeza tinha alguma coisa naquele suco, por que você bebeu? Eu não sei responder. Mas o suco tinha gosto de maracujá e apenas isso.
Minha amiga me puxou pela mão pra perto do fogo e começou a dançar e eu só queria sair correndo porque eu não danço. Ela deu umas duas voltas na fogueira que estava incrivelmente alta e estalava sem parar. Mais pessoas começaram a se juntar a ela e pulavam, cantavam, tocavam o pandeiro.
Não sei quanto tempo isso levou, mas em algum momento entre eu dizer que eu não iria dançar e as pessoas se juntarem à roda ao redor da fogueira, eu tenho apenas um flash de memória onde eu encaro minhas roupas de cigana dentro do quarto, e no próximo momento eu estou dançando em volta da fogueira também, descalça, metendo os pés na grama cheia de orvalho.
Não foi uma sensação ruim na hora. Eu acho que estava me divertindo, mas conforme eu dançava, parecia que minha energia ia se esvaindo e percebi que estava com muita fome e muita sede também. Então me afastei para voltar para dentro da casa e pescar alguma coisa na cozinha, porque eu tinha a vaga lembrança de ter visto um tipo de buffet de cachorro-quente lá dentro.
Não sei se já aconteceu com você, mas sabe quando você acorda e seus sentidos vão religando aos poucos? Como quando você dorme com o ventilador ligado, abre os olhos e só então ouve o ventilador funcionando? Foi mais ou menos isso que aconteceu conforme eu ia me afastando.
A insegurança que tinha sentido antes voltou com tudo, a casa parecia mais escura, parecia fazer mais frio do que antes e então eu finalmente me percebi usando minhas roupas de cigana sem saber quando foi que eu as tinha colocado!
Eu corri para o quarto ainda no escuro para procurar meu celular. Minhas roupas estavam dobradas em cima do beliche, mas claro que eu não lembrava de ter feito isso. Quando achei meu aparelho (um Nokia daqueles ostentosos) vi duas coisas: ainda não tinha dado nem dez horas, e eu estava sem sinal. Tranquei a porta e me troquei evitando chorar, porque eu já não sabia o que estava acontecendo, afinal como pode eu não me lembrar ter trocado de roupa?
Eu só queria ir embora, então fui atrás da minha amiga de novo, mas tinha tanta gente dançando em volta da fogueira que eu não conseguia encontrá-la. Então acabei me sentando no chão, abraçando as pernas. Passei cinco minutos assim quando um casal veio falar comigo perguntando se eu estava bem, e eu só disse que queria ir para casa.
Aquele casal me emprestou o telefone deles, que milagrosamente tinha sinal, e eu liguei para a mãe da minha amiga, para que ela viesse nos buscar, mas ela não atendeu. Então finalmente liguei para os meus pais – novamente sem sucesso, porque agora eram eles que estavam sem sinal.
Eu devia estar com cara de quem estava com medo, porque eles mesmos se ofereceram para me levar para casa. E eu aceitei.
Triz, você é maluca? Como que você aceita carona de estranhos? De novo, eu.não.sei. Mas eu estava tão assustada que pensei que ir com eles era melhor do que ficar naquele lugar, onde eu não conhecia ninguém e onde minha amiga havia desaparecido.
No fim das contas eu fui embora sem ela. Peguei minhas coisas e entrei no carro com dois completos estranhos. À luz interna do veículo eles pareciam apenas um casal que gostava da moda hippie. Ela com um xále tricotado e ele com uma camiseta fina tie dye. Ele seguiram o caminho conversando entre si enquanto eu ficava com os olhos colados na tela do celular para ver quando ficaria com sinal de novo.
Minha sorte foi: eles não eram psicopátas que queriam meu sangue para oferenda, e também moravam perto da casa da minha amiga, que graças a Deus fica na mesma rua da minha avó. Então foi fácil chegar até lá.
Hoje não me lembro dos rostos deles, da marca ou da cor do carro, nem do nome de cada um. Eles só me deixaram em frente ao portão e ainda tiveram a consideração de me esperar entrar para ter certeza de que eu ficaria bem.
É, a história não é tão sinistra quanto parecia,
não é? Mas imagina como seria para você se tivesse 12 anos e estivesse na minha situação naquele dia.
O mais esquisito é que, depois de contar essa história para os meus colegas no trabalho, perguntei para essa minha amiga, com a qual ainda tenho contato, se ela se lembra dessa festa.
Ela disse que nunca me levou em nenhuma festa cigana. Mas ao mesmo tempo, meus pais se lembram de eu ter ido para o tal evento e também se lembram do fato de terem ficado muito putos da vida quando souberam que eu tinha voltado cedo depois de ter enchido tanto para que eles me deixassem ir. Isso, claro, porque nunca contei para eles como essa experiência foi esquisita.
Então, no fim das contas eu tenho certeza de que eu realmente fui ao tal lugar, porque meus pais se lembram, de que eu de fato voltei de carona com alguém que não era a mãe da minha amiga, e também de que ou minha amiga tem uma péssima memória, ou mentiu para mim por algum motivo.
Também pode-se considerar que, talvez, todas essas impressões negativas tenham sido produto da minha mente assustada de 12 anos.
E você? Tem alguma história assim?