Eu tinha cerca de doze anos e morávamos em Porto Alegre quando meu pai me levou em uma viagem para o interior de São Paulo. Ele viajava a trabalho e eu o acompanhei. De quebra, voei pela primeira vez. Na ida, comprei O exorcista, de William Peter Blatty, em uma banca. Uma edição barata, capa mole com uma foto do filme e o interior em papel jornal. Virei aquela noite no hotel lendo, apavorado. Tenho o livro até hoje.
Quando vi na livraria a edição em português de A nona configuração, lançado pela Editora Agir, foi compreensível que minha memória afetiva fosse despertada. Comprei o livro ele acabou passando na frente de todos os outros na minha (longa) lista de leitura.
William escreveu e publicou a ideia da trama, pela primeira vez, em 1966, sob o título de Twinkle, Twinkle, “Killer” Kane!. Como explica em uma nota no início de A nona configuração:
O conceito básico foi, certamente, o melhor que já criei; mas o publicado, sem dúvida, não foi mais do que as anotações para um romance: alguns esboços, sem forma, sem acabamento, que careciam até de uma trama.
Assim, não satisfeito, retornou à história e relançou-a em 1978, com o novo título [em inglês:The ninth configuration]. Curiosamente, em 1999 revelou no livro The exorcist: Out of the shadows, de Bob McCabe, que, embora a prosa da segunda versão tivesse sido mais “finamente trabalhada” (“finely crafted”), preferia a primeira versão, mais “engrada e selvagem” (“funnier and wilder”).
O cenário é um clássico. Uma mansão gótica, localizada em meio a uma floresta no estado de Washington, chamada de “Centro Dezoito”. Nela, a Marinha dos Estados Unidos internou um conjunto de militares, subitamente acometido por alguma misteriosa síndrome de loucura. O centro fazia parte do “Projeto Freud”, uma rede de retiros criados para o estudo e tratamento de militares acometidos do mesmo problema. Os centros serviam, também, para retirar os pacientes dos olhos da opinião pública, sensível a qualquer fato envolvendo o exército durante o conturbado período da Guerra do Vietnã.
Cada um dos vinte e sete pacientes possui o seu próprio conjunto de sintomas e comportamentos. Todos são “funcionais”, ou seja, agem e interagem, embora apresentem certas manifestações que misturam fobias, psicoses, esquizofrenias e assim por diante.
A figura central do livro é o Coronel Kane, que chega ao Centro Dezoito no início do livro, como o novo psiquiatra encarregado de diagnosticar e tratar o peculiar grupo de pacientes. O psiquiatra possui uma estranha linha de ação, que conquista, aos poucos, a confiança dos dementes. Entre eles, o capitão Billy Thomas Cutshaw, um ex-astronauta que manifestou os sintomas durante a contagem do seu lançamento em direção à lua. O coronel Richard Fell, que atua como médico do Centro Dezoito, completa o trio que dá o suporte principal à narrativa.
Grande parte da história se desenrola nas (inspiradas) conversas entre Cutshaw, que exerce uma espécie de liderança entre os demais pacientes, e o Coronel Kane acerca de questões existenciais e matafísicas, como a existência de Deus. Paralelamente, há a descoberta dos segredos do personagem principal.
O principal problema de A nona configuração não é o livro em si, mas a expectativa criada no leitor pela forma como a sua história é anunciada e vendida. Embora nada seja dito de forma explícita, sua capa, contracapa, sinopse e orelha, além do background do autor levam a crer que o livro narra uma história de horror, terror ou suspense. É contudo, um drama, que apenas tangencia o suspense. No correr da leitura, que é rápida (apenas 115 páginas), senti uma pequena frustração não pelo texto, mas por pensar que fui sutilmente sugestionado quando o comprei.
A história foi levada as telas em 1980 pelo próprio William Peter Blatty, que escreveu, dirigiu e produziu o filme, depois de o roteiro ser recusado pelos grandes estúdios. Embora o filme não tenha sido um sucesso comercial, ganhou a indicação de melhor filme para o Globo De Ouro do ano de 1981.
A nona configuração, em conclusão, é um bom drama sobre os efeitos da guerra, escrito quando as feridas do conflito no Vietnã ainda estavam abertas e expostas. Possui ótimos personagens, uma história imaginativa e grandes diálogos, que conduzem o leitor por um caminho que flerta com a filosofia até o surpreendente final.
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