O problema dos três corpos atraiu minha atenção por dois motivos. Era escrito por um chinês, Cixin Liu, o que imediatamente o alçava à condição de raridade entre as obras vertidas para a língua de Camões, e foi o ganhador do Prêmio Hugo de 2015.
Para quem não conhecesse, o Hugo talvez seja um dos mais plurais e prestigiados prêmios concedidos para obras literárias de ficção científica e fantasia do mundo. É um selo de qualidade autêntico e que – ainda? – não se deixou dominar pelas exigências de mercado. Dificilmente um romance que o ganhou será ruim. O problema dos três corpos não foi exceção.
O livro abre no ano de 1967, em plena revolução cultural. Ye Wenjie, uma astrofísica, tem a sua vida familiar dilacerada pelos grandes movimentos sociais de Mao Tsé-Tung. Uma sucessão de eventos acaba por levá-la ao confinamento na base da Costa Vermelha, um projeto secreto da China que tentava estabelecer contato com culturas extraterrestres.
Depois de um salto de quarenta anos, a história prossegue com Wang Miao, um especialista em nanotecnologia que vive na China contemporânea, chamado para auxiliar um grupo interdisciplinar coordenado pelo exército. Entre outros objetivos, que são gradativamente revelados no correr da trama, procuram desvendar o motivo dos suicídios de três cientistas renomados que aconteceram num período de dois meses. Todos estavam vinculados a um grupo denominado “Fronteiras da Ciência”, no qual Wang se infiltra como um informante.
A narrativa é rápida. Wang descobre que o suicídio da última pesquisadora decorreu de puro desespero intelectual. Ela concluiu, com base nos resultados de três aceleradores de partícula recentemente colocados em operação, que todos os modelos teóricos conhecidos em física quântica estariam equivocados. O mundo seria regido pelo caos.
Abalado com as informações que obteve, Wang tenta se descontrair com o seu hobby, a fotografia. Ao revelar suas fotos, entretanto, ele descobre estranhos números em todos os negativos. Faz experimentos com máquinas e filmes diversos, mas eles continuam lá. Nada que Wang conheça sugere uma explicação racional. Os números acabam por se revelar como sendo uma contagem regressiva desesperadora, que migra para sua própria visão. E, nesse ponto, você já está completamente preso ao livro.
“Ao abrir os olhos, viu o teto pouco nítido. Do lado de fora, as luzes da idade lançam um brilho fraco nas cortinas. Porém, teve companhia ao voltar à realidade: a contagem regressiva. Ela ainda pairava diante dos seus olhos. Os números eram finos, mas brilhavam muito, com uma luminosidade intensa. 1180:05:00, 1180:04:59, 1180:04:58, 1180:04:57.” (Página 291)
A trama continua a se desenrolar de forma rápida, ora com Wang ora com Wenjie, que convergem em suas respectivas linhas cronológicas para o ponto no qual se cruzam.
O problema dos três corpos transporta o leitor por meio do contato entre civilizações, da astrofísica, da matemática teórica, da física de partículas, dos jogos de computador, da história da China, de questões políticas e ecológicas … E tudo isso com a roupagem de um suspense policial.
O sistema solar de Trisolaris, um planeta que desempenha importante papel na história, e seus três astros em movimentos aleatórios, por exemplo, exige alguma capacidade de abstração do leitor para ser compreendido. Outro detalhe interessante é o fato de a história do planeta ser contada por meio da participação de Wang em um game de imersão, com o uso de um traje sensorial, lembrando (na verdade, antecipando) algumas concepções que Ernest Cline trabalhou no livro Jogador n°1.
“O projeto Sófon, basicamente, […] visa transformar um próton em um computador superinteligente […] Eu sei que os físicos já são capazes de manipular nove das onze dimensões da escala micro, mas ainda não fazemos ideia de como seria possível enfiar pinças em um próton e construir circuitos integrados de larga escala. — É claro que isso é impossível. […] Por isso, precisamos abrir um próton em duas dimensões. — […] De que tamanho vai ser essa área? — Muito grande, como vocês verão.” [Página 291]
Pesquisando sobre a história do livro, fiquei impressionado com o fato de ele ter sido originalmente publicado, na China, em 2006. Ganhou diversos prêmios no mercado asiático, mas foi traduzido para o inglês quase dez anos depois. Ainda assim, a solidez, originalidade e complexidade das suas ideais e temas garantem não só que permaneça como um livro atual, mas, também, em vários sentidos, um livro que se coloca à frente dos seus congêneres. Está sendo, inclusive, adaptado para as telas, devendo o filme ser lançado no correr deste ano.
Nem tudo, no entanto, são elogios.
Falta alguma profundidade aos personagens. Com exceção de Wenjie, eles se revelam estereotipados, sem espontaneidade ou camadas.
A narrativa, em alguns pontos, é truncada ou apressada demais. Talvez, parte deste problema decorra da tradução primeiro para o inglês (por Ken Liu, também um autor de ficção) e, depois, para o português, processo que certamente não ocorre sem cicatrizes no texto.
A profusão de temas deveria ter sido desenvolvida com mais vagar. As 316 páginas da minha edição revelam-se apertadas para o conteúdo. Parece, contudo, que Cixin Liu não tem escassez de criatividade. O problema dos três corpos faz parte de uma trilogia: “Remembrance of Earth’s Past” [Lembranças do passado da Terra], em tradução livre. Os livros dois e três, The Dark Forest e Death’s End, ainda não foram lançados no Brasil.
A leitura, finalizo, é um deleite para quem gosta de inventividade e solidez em ficção científica. Inclui-se no grupo? Então anote na sua lista.
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