(9 entre 10 galáxias recomendam a leitura de A Mão Esquerda da Escuridão)
Sempre fui do tipo que rola os olhos para ficção científica – salvo algumas exceções óbvias (algumas não tão óbvias assim se pensarmos mais no termo “científica” do que ficção”) como O Guia do Mochileiro das Galáxias, 1984, Laranja Mecânica, Ensaio sobre a Cegueira, Guerra dos Mundos, Star Wars… -, achando o gênero exatas demais para meu coraçãozinho de humanas. Até entender, com a incrível introdução da autora Ursula K. Le Guin nas primeiras páginas do livro A Mão Esquerda da Escuridão, do que realmente se trata a ficção científica e o que ela realmente quer passar aos leitores com suas histórias futuristas: não se trata de prever o futuro, e sim de retratar o presente de uma forma “mentirosa”, como diria a autora:
“A ficção científica não prevê; descreve.
Previsões são feitas por profetas (de graça); por videntes (que geralmente cobram um honorário e, portanto, são mais respeitados em sua época do que os profetas); e por futurólogos (assalariados). Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas. O trabalho dos romancistas é mentir”.
Só com esse trechinho já dá pra arrepiar só de imaginar como vai ser a narrativa de uma autora com reflexões como essa, não é mesmo?! Receosa que estava em lidar com uma ficção científica considerada como um dos clássicos do gênero, passei a esperar ansiosamente pelo começo da história! ESTOU PRONTA PARA SEU LIVRO, QUE VENHA A FICÇÃO CIENTÍFICA, foi mais ou menos como me senti ao final da introdução, haha!
SINOPSE: Genly Ai foi enviado a Gethen com a missão de convencer seus governantes a se unirem a uma grande comunidade universal. Ao chegar no planeta Inverno, como é conhecido por aqueles que já vivenciaram seu clima gelado, o experiente emissário sente-se completamente despreparado para a situação que lhe aguardava. Os habitantes de Gethen fazem parte de uma cultura rica e quase medieval, estranhamente bela e mortalmente intrigante. Nessa sociedade complexa, homens e mulheres são um só e nenhum ao mesmo tempo. Os indivíduos não possuem sexo definido e, como resultado, não há qualquer forma de discriminação de gênero, sendo essas as bases da vida do planeta. Mas Genly é humano demais. A menos que consiga superar os preconceitos nele enraizados a respeito dos significados de feminino e masculino, ele corre o risco de destruir tanto sua missão quanto a si mesmo.
Pontos Positivos:
A reflexão já começa logo na sinopse, e foi exatamente o que me atraiu para escolher esse livro. Como assim, uma raça alienígena que não é separada por gênero masculino e feminino? Como isso funciona? Esse novo universo nos é apresentado pela perspectiva do emissário Genly Ai, um terráqueo enviado ao planeta Gethen pela federação galáctica Ekumen, uma organização que reúne planetas habitados por humanos para troca de conhecimentos, culturas e tecnologias. Genly tem a missão de “recrutar” o planeta Inverno (deixo vocês adivinharem por que o planeta também é conhecido por esse nome!) para fazer parte dessa ordem, e para isso ele precisa convencer os governantes de que ele não é apenas um lunático, que outros mundos existem, e que o Ekumen não virá para tomar o planeta deles, e sim para aumentar as fronteiras numa troca de recursos que trará prosperidade, e não representa nenhuma ameaça para a integridade política do planeta.
A missão em si já é um grande desafio, e Genly Ai tem que contar com a ajuda de nomes com influência para ajudá-lo, mas antes ele precisa se adaptar aos costumes do novo mundo – o povo do planeta tem uma evolução bem mais lenta e um clima muito mais vigoroso do que Genly está acostumado, são extremamente sensíveis e vulneráveis, sem contar o estranho “jogo de egos” que é o shifgrethor – “prestígio, aparências, posição, orgulho, o intraduzível e importantíssimo princípio de autoridade social em Karhide e em todas as civilizações de Gethen”, como descreve Genly. A convivência com os gethenianos não é apenas um choque cultural, mas também biológico. Os habitantes do planeta Inverno não possuem um gênero definido, são homens e mulheres ao mesmo tempo, e só assumem uma das formas no kemmer (um tipo de “cio” que ocorre todo mês), e a forma que assumirão dependerá da troca hormonal entre os parceiros – se um deles está com mais hormônios masculinos, o outro assumirá a forma feminina, e vice-versa. É comum que os casais “revezem” a vez de quem terá filhos, então o pai de uma criança pode ser a mãe da próxima. Confuso?! Espere até ler uma frase como “o Rei está grávido”!
O detalhe que me deixou ainda mais animada com todo esse conceito é que essa tal “androgenia” não se limita apenas a aparência – o comportamento deles também é uma mistura de comportamentos que Genly identifica hora como masculinos ou femininos. Tais detalhes acabam influenciando em questões sociológicas e psicológicas do povo de Gethen.
Tudo isso, claro, causa um impacto inicial muito forte, que acaba resultando em um preconceito, tanto da parte de Genly quanto dos gethenianos. Mas não é um preconceito intencional, mas sim intrínseco – Genly não consegue decifrar de primeira como deve entender essa ambissexualidade, e está sempre tentando classificar os habitantes como homens ou mulheres, o que não funciona nessa sociedade. Por sua vez, os gethenianos julgam Genly como um Pervertido – que é como chamam aqueles que usam derivados hormonais para estabelecer a forma de homem ou mulher fora de seu kemmer – é como estar no cio em tempo integral. Mas, conforme o tempo que passa entre os gethenianos aumenta, o preconceito de Genly vai se modificando, virando estranhamento, até chegar à familiaridade. E a construção da autora de todo esse processo é o que faz a obra ser tão intensa.
As ricas descrições de Ursula, não somente dos belos e cortantes cenários gelados, mas também das emoções, acontecimentos e conflitos dos personagens nos ambientam nesse novo mundo com uma narrativa que flui com facilidade e prende nossa atenção. O livro conta com alguns capítulos intercalados à história principal que contam lendas do povo do Inverno, que nos explicam mais sobre os costumes, crenças e a biologia dos gethenianos, e foram minhas partes preferidas!
O povo de Inverno é conhecido como pacífico, sem inclinações para a guerra… Até que, motivados por disputas políticas, isso começa a mudar e os conflitos entre as nações ficam mais proeminentes. E é aí que a maior aventura começa para Genly, que acaba se tornando um instrumento político, e acaba encontrando novas motivações para sua missão, que se mostra cada vez mais difícil de ser completada. Ursula nos faz refletir sobre nossa sociedade, com afirmações incômodas sobre nossa realidade disfarçadas em ficção, temas que continuam atuais e ressoam por toda sua galáxia, ao nos fazer conhecer um novo povo, um novo mundo, com os mesmos problemas que nós enfrentamos. Não é preciso ir muito longe, para outro planeta, para experimentarmos o preconceito, a ganância, as injustiças de conflitos políticos e territoriais. Infelizmente, conhecemos muito bem tudo isso presos aqui na Terra.
Pontos Negativos:
A ideia de uma espécie que, na maior parte do tempo, não possui sexo definido, é tão fascinante quanto utópica, tanto que me pareceu até mesmo difícil passar essa intenção para o papel ou, pelo menos, de traduzir essa intenção. A ilusão de entendermos tais seres é comprometida no desenvolvimento da história, já que na maior parte do tempo todos da espécie são apresentados a nós como pertencentes do sexo masculino. Acredito que a dificuldade de descrever e identificar essa falta de gêneros seja proposital, porque vemos quase tudo pelos olhos de Genly, que também não está acostumado a essa nova cultura e biologia. Em certa parte do livro, um dos pesquisadores até chega a afirmar que “na falta do ‘pronome humano’ karhideniano usado para pessoas em somer, devo dizer ‘ele’, pelos mesmos motivos por que utilizamos o pronome masculino ao nos referir a um deus transcendente: é menos definido, menos específico do que o pronome feminino. Entretanto, o próprio uso do pronome em meus pensamentos me leva, continuamente, a esquecer que o karhideniano diante de mim não é um homem, mas um homem-mulher”.
Tal afirmação, de que o pronome masculino é menos definido, é um grande debate hoje em dia na língua inglesa. Intrigada com meu incômodo, fui comparar alguns trechos (como o transcrito acima) em inglês para ver se tinha fundamento, e vi que várias outras pessoas também questionam essa escolha, até mesmo chegando a sugerir que a autora deveria ter inventado algum pronome, mas não acho que seria uma solução muito viável, embora o uso de pronomes masculinos seja um tanto quanto limitador, ainda mais quando traduzido para uma língua como a portuguesa, onde as marcações de gênero ainda mais fortes do que na língua inglesa e dificultam ainda mais a transmissão da intenção de seres que não são neutros – possuem os dois gêneros. Sendo estudante de tradução, entendo as dificuldades – e talvez até a impossibilidade – de fazer com que essas marcações que não existem no inglês desapareçam no texto traduzido para o português, mas não posso deixar de me sentir um pouco frustrada durante a leitura, já que até mesmo quando o capítulo é contado sobre a perspectiva de um getheniano essa pressuposição masculina está presente.
Falando em capítulos com visões de outros personagens, outra coisa que me incomodou um pouco foi a falta de distinção em alguns capítulos da mudança de voz. Em alguns casos demorei bons parágrafos para entender quem estava falando, criando uma breve confusão, já que a mudança é abrupta e sem avisos. Porém, com o tempo, vamos nos acostumando a não tomar o próximo capítulo como garantido e a prestar mais atenção em quem está falando antes de assumir errado.
Alguns erros de revisão também me chamaram a atenção, mas como costumo sempre relevar esse tipo de coisa para aproveitar mais a leitura, não deixei que isso interferisse. Porém, para um livro tão importante para a ficção científica, acredito que um olhar mais atento para tais erros seja uma melhoria bem-vinda!
Trechos Marcantes:
“- O desconhecido – disse a voz suave de Faxe na floresta -, o não previsto, o não provado: é nisso que se baseia a vida. A ignorância é a base do pensamento. A não-prova é a base da ação. Se houvesse certeza de que Deus não existe, não haveria religião. (…) Mas também, se houvesse certeza de que Deus existe, não haveria religião… Digam-me, Genry, o que sabemos? O que é certo, previsível, inevitável… a única certeza que você tem sobre o seu futuro, e o meu?
– Que vamos morrer.
– Sim. Só existe realmente uma pergunta que pode ser respondida, Genry, e já sabemos a resposta… A única coisa que torna a vida possível é a incerteza permanente e intolerável: não saber o que vem depois”.
“Se a civilização tem um oposto, é a guerra. Das duas coisas, ou se tem uma ou outra. Não ambas”.